por João Aníbal Henriques
Em linha com o conjunto de
circunstâncias inexplicáveis que dão forma aos mais importantes e impactantes
episódios da História de Portugal, o conhecido “Milagre das Rosas”, protagonizado
pela Rainha Santa Isabel, é um dos mais importantes exemplos da forma como o
maravilhoso e o fantástico se cruzam amiúde, dando forma a entendimentos que
ultrapassam gerações. São eles que, sem sentido algum, dão sentido ao sempre
intrincado enredo de condicionalismos que compõe a existência humana…
Nascida em 1271 e filha do Rei D.
Pedro III de Aragão e da Rainha Constança da Sicília, Isabel de Aragão foi
rainha de Portugal por casamento efectuado por procuração com o Rei Dom Dinis
em 1282.
A criança, trazida para Portugal
em virtude de um casamento que resultou dos interesses políticos daquela época,
recebeu mercês diversas e o senhoria de uma imensidade de cidades e vilas que
serviram de dote inicial.
Com um marido que os documentos
coevos apontam como “pouco devotado” à sua jovem esposa e dedicado em demasia
aos encantos femininos de Portugal, a Rainha Santa Isabel ficou conhecida pela
forma benigna que utilizava para tratar o seu marido e os muitos filhos
ilegítimos dele. Em igualdade com os seus próprios filhos, a todos tratou com o
mesmo desvelo, garantindo-lhes alimentação e educação e trazendo-os para o paço
onde os mesmos cresceram.
Reza a lenda que, num dia em que
o próprio rei a informou de que iria visitar umas amigas num convento situado numa
zona próxima de Lisboa, foi ela própria quem lhe respondeu “Senhor… ide vê-las”
tendo dado origem ao topónimo Odivelas.
Profundamente devota e dedicada
às causas sociais, são também conhecidos vários arrufos com seu marido que, preocupado
com o rombo nos cofres reais, via com maus olhos o desvelo com que ela tratava
os mais pobres e necessitados, a quem oferecia pão e dinheiro a título de
esmolas que lhe granjearam fama de santa ainda em vida. Foi de um desses
episódios, aliás, que nasceu a sua lenda mais conhecida – a Lenda das Rosas –
que romanticamente se espalhou em Portugal e que acabou por influir largamente
na definição do espectro da espiritualidade nacional.
Reza a lenda que, numa manhã fria
de Janeiro, a rainha saia do paço carregando pão para os pobres quando foi
interpelada pelo rei que pretendeu saber o que é que ela transportava no
regaço. Mentindo-lhe, a rainha disse-lhe que eram rosas que iria utilizar para
alegrar os altares das igrejas da cidade. Estranhando a existência de rosas em
pleno Inverno e principalmente naquela gélida manhã de Janeiro, Dom Dinis terá
solicitado à rainha que lhe mostrasse o que transportava, e ela, largando das
mãos o pão que escondia, deixou cair no chão um conjunto maravilhoso e muito
aromáticos das mais bonitas rosas que se tinham visto por aquelas paragens… “São
rosas, senhor!” foi a frase que ficou a marcar os arquétipos da crença
nacional, corporizando um milagre de metamorfose alquímica que fui considerado
como a prova máxima da sua santidade e sustento principal da sua beatificação
(1516) e posterior canonização (1742).
Tendo tido uma profusa
intervenção política em Portugal e em Castela, não só durante o período em que
foi rainha mas também depois de viúva, interveio muitas vezes como mediadora em
conflitos variados evitando a guerra e alcançando a paz entre os oponentes. O
melhor exemplo aconteceu ainda durante a vida de Dom Dinis, quando este, dando
preferência a um filho bastardo a quem pretendia deixar em herança o próprio Reino
de Portugal, entrou em conflito com o filho legítimo, futuro Dom Afonso IV,
tendo sido a rainha quem garantiu o alcançar da paz através de um processo de
mediação que evitou aquela que possivelmente teria sido a mais sangrenta das
guerras civis de Portugal.
Já muito doente, com a peste que
matou centenas de milhares de pessoas em Portugal, deslocou-se a Estremoz em 1336
pra uma vez mais intervir num conflito que opunha o seu filho ao Rei de Castela.
Faleceu no Paço Real daquela vila Alentejana, deixando escrita a sua vontade de
que o seu corpo fosse sepultado no Convento de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra,
onde havia professado.
Tendo morrido em Julho, numa
época de calor tórrido semelhante aquele que ainda hoje fustiga aquelas terras,
foi preparado um caixão de chumbo para transportar o corpo na longa viagem que
teriam de fazer até à Cidade do Mondego. Tentando evitar os cheiros resultantes
da decomposição do corpo ao longo daqueles dias, o féretro foi reforçado e
envolvido em vários tipos de panejamento e em perfumes de várias espécies.
Mesmo assim, mercê do calor que
afectou o caixão durante o trajecto, este ter-se-á deteriorado com os gases
libertados pelo cadáver da rainha e aberto algumas rachas por onde começou a
sair um líquido espesso que muito preocupou muitos daqueles que acompanhavam o
cortejo. Mas, para surpresa de todos, verificou-se que esse líquido deitava um
cheiro maravilhoso a flores e não o mau-cheiro pelo qual todos esperavam…
Por ocasião do processo de canonização,
já no Século XVIII, quando o caixão foi transportado de Santa Clara-a-Velha
para Santa Clara-a-Nova depois de as águas do Mondego terem inundado por completo
o antigo convento, o caixão voltou a ser aberto e perante a estupefacção de
todos, verificou-se que o corpo se mantinha incorrupto e que o cheiro continuava
a ser o mesmo aroma a flores que haviam descrito os participantes no primeiro
cortejo praticamente quatro séculos antes.
Na actualidade, com muitos
devotos espalhados por Portugal e por Espanha, a Rainha Santa Isabel é venerada
a 4 de Julho, dia da sua morte, sendo a sua mão exposta pontualmente para que
possa ser vista por milhares de interessados.
Rainha, mulher e santa, Isabel de
Aragão é uma das figuras incontornáveis da História de Portugal. Na sua
vertente mística, associada a processos complexos de uma originalidade sem
igual, extravasou largamente o seu tempo e espraiou a sua influência ao longo
de muitas gerações que foram cruciais no desenvolvimento na afirmação e na
sobrevivência de Portugal.
A sua veia alquímica, suportada
pelo controle efectivo da organização da matéria, visível no Milagre das Rosas
e na incorruptibilidade do seu corpo venal, representa o êxtase máximo que se
pode associar à magia deste País tão especial…