por João Aníbal Henriques
Parece impossível, inverosímil e
inaceitável! Mesmo quem percorre as ruas do centro de Berlim, aceitando o
horror do que ali se passou durante a II Grande Guerra e que ainda se sente,
tem dificuldade em aceitar que há tão pouco tempo tenha sido possível à capital
de uma das mais importantes nações da Europa viver dividida num regime de
terror que contraria os mais elementares princípios do respeito pelo homem… e
no entanto, apesar de tudo e de todos, das memórias bem vivas que se preservam
nas vidas daqueles que ali sofreram estas atrocidades, e de toda a evolução que
a Europa conheceu ao longo das últimas décadas, passaram-se apenas 25 anos
desde o início da demolição do muro da vergonha. Foi ontem…
É quase impossível, para quem
viaja carregando a sensibilidade humanista natural na nossa sociedade
ocidental, visitar a capital da Alemanha sem se transtornar com as memória
sentidas que transbordam a cada recanto daquela cidade tão especial.
À primeira vista, para quem gosta
da história e de tocar os mesmos monumentos e espaços tocados por outros ao
longo dos milénios, Berlim não é a cidade ideal para uma viagem de recreio. Mas
isso é só à primeira vista. Apesar de ter sido quase completamente arrasada em
1945 durante os bombardeamentos que puseram fim à II Guerra Mundial e ao ciclo
de terror imposto pelo III Reich nazi, parece que as pedras que reconstruíram a
cidade carregam consigo as memórias terríveis que encheram de dor, sofrimento e
consternação aquele espaço.
Em cada canto que se visita, lá
estão ainda os ecos dos passos ignominiosos do Führer e as sombras cáusticas
dos milhões de homens, mulheres e crianças que caminharam aterrorizados para
uma morte atroz e inconcebível. Os monumentos, as casas e as ruas, todos novos
e alguns deles com pouco mais de década e meia de existência, não foram capazes
de se limpar destas emoções e elas envolvem-nos, num limbo de nojo e de
amargura que é maior do que as palavras utilizadas nos muitos guias turísticos
que por lá se vendem, e que tornam única uma visita atenta a este local
emblemático da Europa onde hoje vivemos.
Construído a partir de 1961, como
consequência do agravamento das relações muito tensas que resultaram da divisão
da cidade pelos aliados ocidentais e soviéticos depois do final da guerra, o
muro de Berlim era uma realidade física com mais de 156 kms de comprimento e
cerca de 300 torres de vigilância que literalmente dividiram a cidade e os seus
habitantes, separando famílias e reforçando a dor da qual a Alemanha não tinha
conseguido recuperar depois das atrocidades da guerra.
De um lado, o sector ocidental,
Berlim era essencialmente Americana. Orientações urbanísticas que promoviam a
democracia, com edifícios de vidro e superfícies transparentes, amplos jardins
verdejantes e centros-comerciais cheios de marcas internacionais, transformaram
a cidade num dos mais cosmopolitas centros da Europa de então. Livres e seguros
da sua vida, os Alemães ocidentais, constitucionalmente integrados na República
Federal Alemã, viviam numa economia de consumo, no qual o liberalismo americano
estava omnipresente, num ambiente de ostentação e consumismo que contrastava
largamente com aquilo que se passava do outro lado.
No sector oriental, vigiados 24
horas por dia e controlados nos seus mais insignificantes movimentos, os
Alemães apartados à força dos seus familiares ocidentais, sobreviviam à sombra
de uma economia de fachada, envolvidos na pobreza de quem não é livre para
escolher os passos que dá, e siderados pelas forças militares de um regime
soviético que cumpria ordens estrangeiras originadas directamente no Kremlin.
O contraste era tão grande e a
separação tão efectiva, que os Alemães de cada um dos lados desconhecia
basicamente a forma como viviam os do outro lado, criando uma série de estórias
e de lendas que, de lado a lado, foram envolvendo os outros numa aura de ficção
extremada que os tornou em gente efectivamente diferente.
Mas há 25 anos, em Novembro de
1989, tudo mudou inesperadamente. Como consequência do enfraquecimento
soviético e da consequente diminuição da opressão militar imposta pela guerra
fria, os Alemães de leste ousaram insurgir-se contra o regime em que viviam.
Esperava-se sangue e terror imenso, em linha com aquilo a que a idade já estava
habituada, mas nada disso aconteceu. Naquela manhã do dia 9, saindo das suas
casas a pé e de bicicleta, milhares de berlinenses saltaram o muro e abraçaram
os seus familiares com os quais tinham perdido o contacto há já tantos anos. E
não aconteceu nada a ninguém.
O muro caiu, de forma tão
expressiva e emblemática e carregou consigo um mundo novo e diferente e uma
Europa necessariamente mais forte a pujante. Tal como é inconcebível a sua
construção, e o modo como o chamado ocidente aceitou a situação ignóbil que
esse monumento criou, inconcebível é também a sua demolição, num movimento
natural de reaproximação que embora marcado pelas feridas insanáveis que ainda
hoje por lá vemos, se impôs ao Mundo como se de uma realidade natural se
tratasse e como se aquele momento, acompanhado ao vivo e em directo por biliões
de pessoas em todo o lado, mais não fosse do que um mero exercício
experiencialista igual a tantos outros que se foram fazendo…
Vinte e cinco anos depois, é
pungente passear em Berlim. Tendo desaparecido quase completamente, demolido e
vendido em peças aos milhões de turistas que imediatamente invadiram os monumentos
antigos que a URSS reconstruiu de fora exemplar depois da guerra, o muro é como
se ainda lá estivesse. As pedras que colocaram para marcar o local onde se
erguia, são um testemunho demasiado pesado por quem ali passa pela primeira vez
e é impossível calcorrear aquela linha sem expressar a questão retórica que
enche a boca de toda a gente: como foi possível?
Como foi possível aquilo que ali
aconteceu? Como foi possível que o Mundo inteiro tenha sido complacente com uma
realidade daquelas? Como possível que a Alemanha, ainda hoje a gemer
lacrimosamente com as feridas que lhe foram impostas por duas grandes guerras, tenha
sido capaz de se reconstruir, de fomentar equilíbrios novos e diferentes, e de
promover um dia-a-dia no qual o bem-estar é parte integrante.
É certo que as memórias do Reich permanecem bem vivas naquela cidade. Apesar de as suas casas, edifícios e monumentos terem desaparecido quase completamente. Mas também é certo que para os Alemães que ali vivem, transformando memórias em negócios evidentemente florescentes, viveram eles próprios mais de 40 anos de terror ninguém compreende.
Berlim não apagou ainda as
memórias das suas guerras, tal como ainda transpira com o suor do terror soviético.
Mas fá-lo como se isto se tivesse passado há 5 séculos e não, como infelizmente
sabemos, há apenas 25 anos. Ontem…