A honra e a glória andam quase sempre a par
nos momentos mais marcantes da História de Portugal. Gente houve que, virando
as costas ao sofrimento e à morte, ofereceram as mãos, os braços e a própria
vida para salvar Portugal. Foi o que aconteceu com Duarte d’Almeida, o decepado
de Toro, que recebeu o Paço de Vilharigues como prova do reconhecimento real
pelos membros que deixou em terras de Castela.
por João Aníbal Henriques
O heroísmo faz parte da
História de Portugal. Num país que quando analisado de forma cuidadosa se
percebe de imediato que não tem nenhuma razão pragmática que explique a sua
independência e o facto de ter conseguido sobreviver a estes quase 9 séculos,
assumem especial importância os actos heróicos de gente que foi capaz de
superar os limites da existência e da racionalidade prática que dá forma à vida
em sociedade. Foram eles quem tornou possível a existência de Portugal,
concretizando autênticos milagres que são essenciais para se perceber este País
extraordinário.
Em Vouzela sobrevivem
hoje os resquícios únicos de um desses milagres excepcionais. O Paço de
Vilharigues e a lendária estória do Decepado de Toro, o porta-estandarte do
exército Português que, em 1476, ofereceu as mãos os braços para salvar a
bandeira Nacional, são o presente de reconhecimento que a coroa entregou ao
herói que deu forma a um dos mais marcantes (e desconhecidos) episódios da
História de Portugal. Não existem provas da presença de Duarte d’Almeida neste
lugar. Mas o que importa isso perante o valor tão grande deste símbolo excepcional?
No centro da Cidade, ali
mesmo onde a solidez da pedra se impõe na arquitectura românica da Igreja
Matriz de Vouzela, sente-se o peso de vários milhares de anos de História.
Vouzela sempre foi uma
cidade importante. Embora seja dos Romanos que resta o maior número de
vestígios, bem documentados através dos marcos miliares que nos permitem
conhecer o emaranhado de muitas estradas que ligavam a cidade directamente a
Roma, são pré-Históricas as origens deste espaço, carregando consigo os
episódios rocambolescos que várias gerações foram acrescentando à História do
lugar.
Apesar disso, o desígnio
de Vouzela é uma lenda, perdida nos tempos e na tradição popular. Duarte
d’Almeida, o decepado alferes-mor de Dom Afonso V, que está indelevelmente
ligado a cada canto e recanto da localidade. Não se sabendo se existiu de
facto, é ele o mítico senhor da região de Dão-Lafões que perdura nas memórias
do povo e que transborda nas pedras duras que dão forma às casas, aos
monumentos e à fácies da cidade.
A partir do alto da
Senhora do Castelo, onde ainda se vislumbram os restos de um antigo castro que
defendia as populações locais durante o conturbado período do neolítico,
percebe-se bem a grandeza das terras de Vouzela. A Senhora do Castelo, ou da
Esperança, conforme surge em alguns documentos medievais, dá o mote a um espaço
com ocupação comprovada desde a pré-História e desde sempre de importância
estratégica na salvaguarda e na segurança da cidade situada no sopé do monte.
As duas interessantes sepulturas antropomórficas existentes no local, escavadas
na rocha que também serviu para construir as muralhas que deram forma ao castro
e que serviram pelo menos até à época medieval, mostram bem a ligação quase
irracional que existe entre a vida e a morte neste local. Interagindo, o espaço
dos vivos e o espaço dos mortos complementam-se, da mesma forma como se
complementam os sonhos e os anseios da população actual com os vestígios, reais
e imaginários – o que importa? – dos antigos que por lá viveram.
Reza o ditado popular que
“triste é o povo que precisa dos seus inimigos para honrar os seus heróis”… e é
isso precisamente que representa o Paço de Vilharigues, em Vouzela,
tradicionalmente apontado como a casa do alferes-mor de Dom Afonso V, Duarte
d’Almeida, conhecido como o “decepado” por ter perdido as mãos e os braços na
batalha de Toro.
A armadura do alferes-mor
Português, entendido pelos “inimigos” espanhóis como um herói corajoso e
intrépido que foi capaz de se entregar pela causa que representava, está
exposto em lugar de grande destaque na Capela de Santiago (Patrono de Espanha),
na Catedral de Toledo, homenageando o herói nacional.
Responsável pelo pendão
Nacional naquela batalha, Duarte d’Almeida foi perseguido pelo inimigo que lhe
cortou a mão com a qual segurava o símbolo de Portugal. Continuando a lutar, o
alferes-mor passou a bandeira para a outra mão que lhe foi cortada de seguida.
E antes de cair, num espectáculo de sangue e sofrimento que serviu para
preservar a honra de Portugal, ainda conseguiu segurar a bandeira com a boca
para a entregar a um compatriota que a colocasse a salvo.
Em Espanha é homenageado
como herói. Em Portugal ninguém sabe que ele foi nem que entregou a própria
vida para salvar Portugal…