por João Aníbal Henriques
Abordar a História de Cascais, numa primeira vista,
pressupõe a menção a um infindável rol de nomes, mais ou menos importantes, ou
de personalidades que viveram ou desempenharam as suas funções profissionais
neste concelho. Para além destes, em alguns casos, fala-se também de conhecidas
confrarias e corporações, que deixaram marcas profundas e de grande
relevo no desenvolvimento histórico da localidade.
No final do século XVIII, quando Portugal assumiu por
fim a necessidade de congregar esforços no sentido de precaver a nação contra
os infortúnios alheios, foi criada em Lisboa, de acordo com as ordens de Pina
Manique e as directivas da Rainha D. Maria, uma
instituição de caridade denominada «Casa dos Expostos». Cascais,
como peça fundamental do devir histórico da época, não esteve alheio a esta
questão, decorrendo pouco tempo até que em aqui se instalasse um organismo
semelhante.
A casa onde funcionava a "Roda", situava-se
numa pequena edificação saloia na Travessa da Nazaré, e que ainda hoje existe
embora muito alterada na sua formulação urbanística original, e estava munida
de uma roda de madeira, que girava em torno de um eixo central, de modo a que
as crianças enjeitadas pudessem ser colocadas no seu interior, sem qualquer
espécie de identificação da pessoa responsável pelo acto. Depois, as crianças
passavam rapidamente para as mãos de uma ama que as recolhia e que, a expensas
do estado, promovia a sua educação durante os primeiros anos de vida.
As amas de Cascais, também elas figuras humildes e
dedicadas ao ofício pelas necessidades financeiras, tinham obrigatoriamente de
ser moças casadas e minimamente preparadas para o desempenho das suas funções,
tal como se pode ler no despacho geral do intendente: «[...] moça casada,
fecunda, bem constituída e aceada, a qual se conservará enquanto for possível;».
Se do ponto de vista psicológico o abandono de
crianças nos últimos anos do século XVIII parece ser um aspecto ímpio da
vivência portuguesa, por outro a instituição da Casa dos Expostos ou da Roda, é também ela
evidenciadora de um sentido novo que emanava dos órgãos de estado portugueses.
Estas crianças, que ganhavam assim uma oportunidade para se manterem vivas,
embora em condições de extrema pobreza, estavam destinadas quase sempre a uma
morte a prazo. Os cuidados de saúde daquela época, bem como a motivação que
levava à candidatura das amas àquele cargo, determinava quase sempre a morte
prematura do abandonado, que se sujeitava, sem que qualquer culpa lhe fosse
formulada, a todas as vicissitudes que ordenavam a vida da Rodeira. Este
problema, indiciador de uma certa sensibilidade por parte das entidades
públicas Portuguesas, é também ele evidenciador de outras questões: Como é
óbvio, a preocupação fica certamente a dever-se ao elevado número de crianças
abandonadas, evidenciando um clima de instabilidade moral que grassava no País
nessa época...
Numa perspectiva patrimonial, e porque a Casa da Roda
de Cascais ainda se mantém no seu sítio, importante seria a recuperação
integral daquele espaço. A manutenção da antiga Roda no centro da vila,
indiciadora de todos os problemas económico-sociais anteriormente mencionados,
é um excelente exemplo crítico de uma sociedade que não se encontra ainda muito
longe de nós e que poderia contribuir para o reforço da atractividade da Vila
de Cascais.
As características arquitectónicas do imóvel,
perfeitamente enquadráveis na tipologia corrente no núcleo histórico da vila de
Cascais, permitiram a subsistência de uma componente da memória colectiva que
muitas vezes é delegada para segundo plano. A compreensão da história do
município Cascalense, bem como da forma como se constituíram, programaram e
delimitaram as funcionalidades urbanísticas deste espaço, ficaram a dever-se a
componentes sociais e psicológicas que são levadas em conta na sua constituição
e que poderiam ajudar-nos a perceber melhor a forma como funcionava a estrutura
social desta nossa terra.
O centro histórico de Cascais, com as ruelas
envolvidas em sombras escuras e húmidas, é o resultado da interacção da
geografia, do urbanismo pré-existente, mas também dos condicionalismos sociais
que deram forma à comunidade Cascalense.
Desconhecida por quase todos, a Casa dos
Expostos de Cascais é um
exemplo da potencialidade patrimonial deste concelho, desaproveitada e
tristemente votada a uma anomia que tanta insatisfação latente vai consolidando
em torno de um identidade há muito deturpada pelos interesses específicos e
particulares daqueles que nos governam.
Uma tristeza!