segunda-feira

A Casa dos Expostos de Cascais



por João Aníbal Henriques

Abordar a História de Cascais, numa primeira vista, pressupõe a menção a um infindável rol de nomes, mais ou menos importantes, ou de personalidades que viveram ou desempenharam as suas funções profissionais neste concelho. Para além destes, em alguns casos, fala-se também de conhecidas confrarias e corporações, que deixaram marcas profundas e de  grande relevo no desenvolvimento histórico da localidade.

No final do século XVIII, quando Portugal assumiu por fim a necessidade de congregar esforços no sentido de precaver a nação contra os infortúnios alheios, foi criada em Lisboa, de acordo com as ordens de Pina Manique  e as directivas da Rainha D. Maria, uma instituição de caridade denominada «Casa dos Expostos». Cascais, como peça fundamental do devir histórico da época, não esteve alheio a esta questão, decorrendo pouco tempo até que em aqui se instalasse um organismo semelhante.




De acordo com as informações de Carlos Andrade Teixeira, ilustre Cascalense, a Casa dos Expostos de Cascais teria sido criada no ano de 1822, recebendo no dia 27 de Julho uma primeira criança do sexo masculino, que foi posteriormente baptizada com o nome de Prudêncio e que viria a falecer um ano mais tarde.

A casa onde funcionava a "Roda", situava-se numa pequena edificação saloia na Travessa da Nazaré, e que ainda hoje existe embora muito alterada na sua formulação urbanística original, e estava munida de uma roda de madeira, que girava em torno de um eixo central, de modo a que as crianças enjeitadas pudessem ser colocadas no seu interior, sem qualquer espécie de identificação da pessoa responsável pelo acto. Depois, as crianças passavam rapidamente para as mãos de uma ama que as recolhia e que, a expensas do estado, promovia a sua educação durante os primeiros anos de vida.

As amas de Cascais, também elas figuras humildes e dedicadas ao ofício pelas necessidades financeiras, tinham obrigatoriamente de ser moças casadas e minimamente preparadas para o desempenho das suas funções, tal como se pode ler no despacho geral do intendente: «[...] moça casada, fecunda, bem constituída e aceada, a qual se conservará enquanto for possível;».

Se do ponto de vista psicológico o abandono de crianças nos últimos anos do século XVIII parece ser um aspecto ímpio da vivência portuguesa, por outro a instituição da Casa dos Expostos ou da Roda, é também ela evidenciadora de um sentido novo que emanava dos órgãos de estado portugueses. Estas crianças, que ganhavam assim uma oportunidade para se manterem vivas, embora em condições de extrema pobreza, estavam destinadas quase sempre a uma morte a prazo. Os cuidados de saúde daquela época, bem como a motivação que levava à candidatura das amas àquele cargo, determinava quase sempre a morte prematura do abandonado, que se sujeitava, sem que qualquer culpa lhe fosse formulada, a todas as vicissitudes que ordenavam a vida da Rodeira. Este problema, indiciador de uma certa sensibilidade por parte das entidades públicas Portuguesas, é também ele evidenciador de outras questões: Como é óbvio, a preocupação fica certamente a dever-se ao elevado número de crianças abandonadas, evidenciando um clima de instabilidade moral que grassava no País nessa época...




Numa perspectiva patrimonial, e porque a Casa da Roda de Cascais ainda se mantém no seu sítio, importante seria a recuperação integral daquele espaço. A manutenção da antiga Roda no centro da vila, indiciadora de todos os problemas económico-sociais anteriormente mencionados, é um excelente exemplo crítico de uma sociedade que não se encontra ainda muito longe de nós e que poderia contribuir para o reforço da atractividade da Vila de Cascais.

As características arquitectónicas do imóvel, perfeitamente enquadráveis na tipologia corrente no núcleo histórico da vila de Cascais, permitiram a subsistência de uma componente da memória colectiva que muitas vezes é delegada para segundo plano. A compreensão da história do município Cascalense, bem como da forma como se constituíram, programaram e delimitaram as funcionalidades urbanísticas deste espaço, ficaram a dever-se a componentes sociais e psicológicas que são levadas em conta na sua constituição e que poderiam ajudar-nos a perceber melhor a forma como funcionava a estrutura social desta nossa terra.

O centro histórico de Cascais, com as ruelas envolvidas em sombras escuras e húmidas, é o resultado da interacção da geografia, do urbanismo pré-existente, mas também dos condicionalismos sociais que deram forma à comunidade Cascalense. 

Desconhecida por quase todos, a Casa dos Expostos de Cascais é um exemplo da potencialidade patrimonial deste concelho, desaproveitada e tristemente votada a uma anomia que tanta insatisfação latente vai consolidando em torno de um identidade há muito deturpada pelos interesses específicos e particulares daqueles que nos governam.

Uma tristeza!