por João Aníbal Henriques
Sendo sete os esteios que
suportam o monumento funerário megalítico que dá fama à localidade das
Alcobertas, no Concelho de Rio Maior, são também sete os pecados que Jesus
Cristo retira do corpo ultrajado de Maria Madalena, a ainda mal compreendida
seguidora do Mestre e principal promotora da religião Cristã depois de ter sido
ela a primeira a encontrar o Salvador depois da sua Ressureição…
A Anta-Capela das Alcobertas,
situada no coração do Ribatejo e num recanto onde são muitos (e muito
interessantes) os vestígios arqueológicos que atestam vivências ancestrais que decorreram
no mesmo espaço, é um dos mais emblemáticos e interessantes casos de
sobreposição de cultos ao longo de vastíssimos períodos da História. Construída
aproveitando a estrutura megalítica anterior, a nova capela, por sua vez integrada
na Igreja das Alcobertas, já do Século XVIII, tem dedicatória a Santa Maria Madalena,
recuperando o ideário profano e os arquétipos mais ancestrais da religiosidade
de Portugal.
De acordo com a lenda (da qual
existem várias versões que nos chegaram por via da tradição oral das
comunidades locais), foi Santa Maria Madalena que fez nascer e crescer os megálitos
que dão forma ao monumento mais antigo. Noutras versões, e perante a vontade do
povo em destruir uma estrutura que consideravam ser de origens pagãs, foi a
dita santa quem zelou pela sua sucessiva reconstrução, num processo que terá
servido para torcer a vontade popular que, dessa maneira, com a intercessão
Divina, lá terá aceite manter a velha estrutura no seu lugar.
Seja qual for a sua efectiva
História, o certo é que o carácter sagrado deste espaço está bem vincado ao
longo de muitas gerações. O espaço funerário original, datado do período
Neolítico, compõe uma ligação simbólica entre os mundos dos vivos e dos mortos
que ainda hoje sustenta a religiosidade local. Mais importante do que os
credos, as crenças e os cultos, neste espaço o que verdadeiramente importa é a
ligação, numa recuperação evidente e simultaneamente sublime, da significação mais
profunda da própria palavra ‘Religião’ – Religare – que aqui assume foros de
uma perfeita identidade. Ligados ancestralmente à sublimação da vida, relegando
para um plano secundário os aspectos mesquinhos relacionados com o dia-a-dia e
com a vida mais perene, os crentes que acedem à Capela de Santa Maria Madalena completam
uma autêntica viagem no tempo sem que saiam do mesmo espaço. No cerne da antiga
anta, naquele que é hoje o altar consagrado à Santa que partilhou com o Filho de Deus uma vida ascética em torno da
vontade do Pai, congregam-se certezas inabaláveis que subsistem na solidez
estrutural da pedra que compõe as suas paredes. É esta perenidade, que
transmite a quem a visita uma sensação de profundo conforto espiritual, que
compõe a ligação quase umbilical que dá corpo à máxima de Jesus e que Maria
Madalena carrega como estigma ao longo da sua vida da Terra e que perdura como
laivo de memória ao longo dos tempos: a de que somos todos irmãos.
Apesar as diferenças de
perspectiva, de opinião, de vontade e mesmo de Fé, o certo é que as pedras que
sustentam a anta-capela são consistentes com a sua vocação de suporte daquilo
que é verdadeiramente importante e essencial. Não se conhecendo a época da sua
cristianização, nem tão pouco sendo isso importante na definição do seu
carácter sagrado, até porque ao longo dos longos milénios que compõem a sua
existência, este espaço terá eventualmente sido alvo de muitos outros cultos
e/ou crenças que se complementam e que fecham o ciclo da sacralidade da própria
localidade das Alcobertas, o certo é que o impacto deste recanto contrasta de
forma muito evidente com a singeleza das suas características morfológicas.
Reforçando a importância da
capela-anta, está o também conturbado processo de construção, reconstrução e
recuperação da igreja que a envolve, e da qual a velhinha estrutura é hoje um
minúsculo altar-lateral. Com uma estrutura de orientação barroca, o edifício do
Século XVIII terá substituído a antiga ermida do Século XV que terá existido no
mesmo local. Problemas diversos, a que eventualmente não será alheia a fraca
qualidade de construção ao longo da sua história, terão servido de mote a
transformações sucessivas no templo que lhe conferiram o aspecto que actualmente
conhecemos. Mas, mesmo com a arcaria monumental da entrada, com a altaneira
torre do relógio (que conheceu acrescentos em época recente), com a magnífica
capela baptismal existente e com a cuidada aparência da sua nave central, o
certo é que continua a ser o diminuto espaço da estrutura antiga aquele para
onde convergem a curiosidade e a fé ancestral de quem por ali passeia.
Os mitos antigos da
Portugalidade, com os cultos pré-históricos da mãe ancestral, numa ligação
entre a virgindade e a pureza originais e a fertilidade da própria terra (da
qual depende a prosperidade das muitas comunidades diferentes que ocuparam este
mesmo espaço), estão aqui linearmente dispostos, congregados numa Maria
Madalena dividida entre a meretriz arrependida que as Escrituras nos trazem e a Santa primordial que a História de Jesus
Cristo impõe à realidade simbólica que a cerceia.
Misto de mistério profundo e de
sonho onírico, a anta-capela das Alcobertas
representa uma descoberta essencial no devir histórico do Portugal de
todos os tempos. O de que a realidade é fugaz e que aquilo que é mais perene
não depende sequer da passagem do tempo…
É este um dos mais significativos
monumentos de Portugal.