por João Aníbal Henriques
Solene e simples, quase perdida
no intricado labirinto de ruelas que dão forma ao centro histórico da Cidade de
Rio Maior, a Igreja da Misericórdia é um dos mais interessantes monumentos
religiosos da região do Ribatejo.
Tendo como orago original a
Assunção de Nossa Senhora, que terá adquirido já no Século XIX quando a antiga
Igreja Matriz fica em ruínas e a Coroa a entrega à Irmandade da Misericórdia,
era anteriormente dedicado ao Espírito-Santo, num repto de singeleza que é bem
visível nos pormenores construtivos que lhe dão forma.
O culto do Espírito-Santo,
expressão sagrada de primeira importância na definição dos mais profundos preceitos
da irmandade Cristã, pressupõe práticas de abnegação e de entrega ao próximo
que estão em linha com o facto de este templo ter sido inicialmente espaço de
culto privativo do antigo hospital da localidade.
Por vicissitudes diversas, a
maior parte das quais relacionadas com a grande dependência que as populações
locais sempre tiveram relativamente à agricultura e aos ciclos da natureza, o
carácter ecléctico deste templo foi-se adaptando ao ritmo de vida das
comunidades locais, adoptando e perdendo sucessivamente muito do seu espólio
decorativo.
Para além de ter recebido, em consequência da
ruína e da desafectação ao culto de outras igrejas da região, várias peças que
outrora haviam estado nesses locais, como acontece com algumas imagens e
alfaias religiosas, a Igreja da Misericórdia foi alvo de acrescentos
inesperados que lhe dão um carácter de excepção no contexto local e que
reforçam o seu interesse por parte de quem a visita.
No altar colateral direito,
actualmente dedicado a Nossa Senhora de Fátima, é notória a adaptação que
sofreu o nicho envolvente, no qual foi inserido um conjunto decorativo do qual
sobressai a dedicatória ‘Avé Maria’, sobre uma moldura na qual assume especial
importância o crescente lunar invertido. Normalmente associado a Nossa Senhora
da Conceição, numa prática hermética que remete para uma cultualidade ancestral
e certamente pré-Cristã desta área do actual território Português, tem por
significado simbólico a destruição do mal aos pés da Senhora, sendo ela, na sua
versão oriental, a Imperatriz que gere as ligações entre o Mundo onde vivemos e
o céu. Neste caso específico, provavelmente desenquadrado em termos rituais,
até porque a inovação da Senhora de Fátima é bastante recente, julga-se que a
definição mais profunda da inovação da igreja venha a ser resultado do
cruzamento entre o culto original ao Espírito-Santo e o milagre alquímico
associado à figura da Rainha Santa Isabel que é, como se sabe, a rainha da
misericórdia. Foi esta Rainha-Santa quem, aliás, desencadeou o processo de
escolha da Nossa Senhora da Conceição como rainha e padroeira de Portugal, num
processo que deu corpo à assumpção, bastante mais tarde, do dogma da Imaculada
Conceição por parte da Igreja Católica.
Depois da construção da nova
Igreja Matriz de Rio Maior, já na segunda metade do Século XX, a Igreja da
Misericórdia volta a perder a dignidade de igreja primaz do concelho, facto que
veio a alterar profundamente a dinâmica devocional da cidade. A nova igreja
matriz recebeu como devoção a Senhora da Assunção, que até aí tinha estado
neste espaço, e recebeu como orago precisamente a Rainha Santa Isabel.
De salientar no corpo da igreja o
altar-mor em talha dourada de inspiração barroca, a bonita capela baptismal e a
imagem da Rainha Santa, junto ao altar lateral onde está a imagem de Nossa
Senhora da Misericórdia. Ara além da singela nave única, em linha com a
planificação espacial típica deste tipo de templos e origem ruralizante, o coro
alto, preparado para receber a irmandade, que impõe uma linha geral de
sobriedade ao espaço.