por João Aníbal Henriques
Como em quase
todas as épocas, também o Estoril da década de quarenta foi vincadamente
marcado por uma existência em que o contra-senso desempenhava um papel
fundamental. Passo a explicar: a imagem, a impressão visual e a sensação que
dele se guarda, sempre que se aborda esta localidade pela primeira vez, acaba
por se mostrar, mais cedo ou mais tarde, completamente diferente daquilo que
verdadeiramente é. O Estoril, misto de uma pacífica harmonia entre as suas
gentes e as suas coisas, é também um poço sem fundo no qual se foram perdendo
muitas histórias que foram apagadas da História.
Nesta década
de quarenta, quando as hostes Nazis infligiam à Europa um pesadelo bélico
inesquecível, o Estoril viu redobradas e devidamente propagandeadas as virtudes
que dele faziam um lugar especial, facto de extrema importância quando sabemos
ter sido esta imagem, vendida amiúde como uma espécie de comparação ao Jardim
do Éden primordial, que sustentou o grande aumento demográfico que se sentiu na
altura. Oriundos de diversas partes do Mundo, fugindo da guerra e dos seus
perigos ou, pelo contrário, procurando no Estoril a oportunidade de fazer
fortuna, chegaram a este local milhares de novos habitantes. Cada um, a partir
das suas vivência e do seu sentir, procurando acentuar as diferenças culturais,
políticas e/ou económicas que os tornavam diferentes, tentava criar no Estoril
uma imagem que ajudasse a suportar os duros momentos impostos por uma guerra da
qual a Europa viria a demorar a recuperar. Para além destes, conheceu este
Estoril um outro grupo de novos habitantes, ou sejam, aqueles que, a soldo das
diversas partes implicadas na guerra e nos diversos partidos e interesses que
nela pelejavam, para aqui se dirigiam tentando compreender e manter-se
informados acerca do que aqui se fazia e dizia. A espionagem e a
contra-espionagem, com uma História ainda por fazer, trouxeram ao Estoril a
arte da dissimulação, da qual dependiam os seus habitantes para conseguirem
ultrapassar as vicissitudes de uma guerra que, muito possivelmente, não
conseguiam compreender.
Rei Humberto II de Itália
A vida neste
Estoril, mais do que composta pelos episódios comuns do dia-a-dia, compunha-se
de episódios rocambolescos, devidamente preparados e ensaiados para fazer
parecer qualquer coisa que verdadeiramente não era. Uma das histórias mais
interessantes desta época, e verdadeiramente tradutora daquilo que era a
vivência estorilense no seio das problemáticas inerentes à II Grande Guerra, é
relatada no ‘Goldenbook of the Estoril
Coast’, na sua edição de 1993/1994: «Uma das histórias mais típicas é a
que relata a vinda de um espião inglês para o Hotel do Parque onde se tentou
fazer passar por alemão. Depois de se hospedar e de beber um copo no bar do
hotel estava confiante. Falava fluentemente alemão e ninguém parecera dele
duvidar. Voltou para o quarto e ao deitar-se descobria, debaixo da almofada uma
bandeira inglesa e uma velha gravata de Eton. Fora descoberto e alvo de uma
brincadeira...»
Elena Vacaresco
A primeira
notícia que possuímos de um contacto entre o Estoril e a população exilada,
data de 3 de Agosto de 1939, quando Elena Vacaresco, escritora e poetisa
romena, se hospedou no Hotel Palácio, um dos locais mais conhecidos na Europa e
que fazia parte da propaganda oficial do regime. Muito embora se não saiba
realmente o que veio fazer a Portugal, e muito menos ao Estoril esta delegada
da Roménia à Sociedade das Nações, organismo que precedeu a O.N.U. na
organização da política internacional após a Primeira Guerra Mundial, alguns
investigadores são de opinião de que veio preparar a vinda de Carol, filho de
Fernando, Rei da Roménia, com quem mantinha uma relação muito próxima.
Muito embora
sejam muito parcas as informações referentes a esta visita, são extraordinariamente
importantes para compreender o posicionamento político cascalense na época, e
sobretudo, para entender qual foi verdadeiramente o papel do Estoril neste
vasto teatro onde os golpes, contra-golpes e demais episódios rocambulescos que
envolveram os exilados, tanto contribuíram para a história da guerra e o Mundo.
Segundo José Vegar, jornalista do Jornal Expresso, a história do Estoril do
exílio deveria fazer-se a partir dos fundamentos documentais que ainda se
conhecem, razão pela qual, a propósito da organização, em 1995, de uma
exposição subordinada a este tema, publica uma peça na qual apresenta uma
misteriosa 5ª Divisão da Câmara Municipal de Cascais, dependente do Presidente
da Câmara, mas dirigida por antigos polícias, que se dedicava a elaborar
ficheiros exaustivos de todos os estrangeiros que se hospedavam no território
municipal de Cascais. Esta divisão, em termos práticos, era um departamento
municipal com funções policiais e de vigilância aos estrangeiros que reportava
directamente à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Para o jornalista
mencionado, a informação constante deste arquivo é de extrema importância na
reconstituição histórica de um período tão importante da História de Portugal: «No livro de registos da 5ª estão todos os seus movimentos – como controlo
de estrangeiros e ocorrências de crimes – e assente toda a correspondência do
serviço com a PVDE, que amiúde lhe solicitava a relação dos estrangeiros no
concelho. No entanto, o bem mais precioso que deixaram para a história foi um
arquivo bolorento mas disciplinado, composto de escassos milhares de fichas
rectangulares como fotografia e nome de estrangeiros, bem como respectivas
moradas e número de passaporte. No verso, números de processos. A estas fichas
juntam-se as dos hotéis».
Arquiduque Otto von Habsburg
Um dos factos
mais importantes apontados por esta peça, na qual se aborda de uma forma muito
exaustiva o Estoril do Exílio, prende-se com a distinção que, segundo o autor,
o Estado português faria entre refugiados e exilados. A grande diferença entre
as duas situações, mais do que aos motivos que alicerçavam a fuga e posterior
chegada a Portugal, baseavam-se nas posses do recém-chegado, sendo considerados
refugiados todos aqueles que tinham obrigatoriamente de se hospedar em casas
particulares ou pensões, que nesta altura proliferam no Estoril, e exilados
todos aqueles a quem as suas posses garantiam um estilo de vida que era
compatível com a qualidade com que se pretendia dotar a localidade.
Edward Windsor e Wallis Simpson
De entre os
muitos exilados chegados entre 1936 e 1955 a Portugal, considerando os
primeiros passos da Guerra Civil Espanhola como propiciadores de inúmeras
chegadas de refugiados, os mais eminentes, pela forma como acabaram por
contribuir para a transformação a face ao Estoril, foram aqueles que haviam possuído
um ceptro real nos seus países. De facto, desde Eduardo de Windsor, até
Humberto II de Itália, muitos foram os reis, rainhas, príncipes e princesas,
que procuram no Estoril a paz que os seus países haviam perdido com a Segunda
Guerra Mundial.
A primeira a
chegar, em unho de 1940, foi a grã-duquesa Carlota do Luxemburgo, que se
instalou na Vila de Santa Maria, no Estoril. De seguida, chegou o já mencionado
Eduardo de Windsor, acompanhado pela sua esposa Wallis Simpson, que ocuparam
muito temporariamente uma casa junto à entrada da baía de Cascais.
De acordo com
o artigo publicado no Jornal Expresso, o casal real inglês teria a intenção de
se manter durante mais tempo em Portugal, só que, contrapondo-se aos seus
planos, as muitas movimentações de espiões nas localidades de Cascais e do
Estoril, acabaram por trazer problemas ao ex-monarca, que daqui seguiu para as
Bahamas: «Os Duques de Windsor ficaram instalados na casa de Manuel Ricardo
Espírito Santo Silva, e quase causara, um problema diplomático a Salazar. A
história ainda hoje é obscura mas passa por um plano de um agente do III Reich,
Walter Schellenberg, que com a colaboração do japonês Kijuro Suzuki tentou
aliciar Eduardo para uma caçada em Espanha, com o objectivo de o raptar
posteriormente para Berlim. Os ingleses estavam a par do estratagema, e
resolveram o problema diplomaticamente, nomeando Eduardo governador das
Bahamas. O paquete ‘Excalibur’ veio
buscá-lo a Lisboa com destino ao seu território».
Com o apoio de
Aristides de Sousa Mendes, o Cônsul português em Bordéus, entraram
posteriormente no Estoril outros dois grandes nomes da vida política europeia:
Otto e José de Habsburgo, vivendo este último durante muitos anos na
localidade. Carol da Roménia, possivelmente em sequência da preparação do
caminho que lhe havia feito a diplomata Helena Vacaresco, chega em Maio de
1941, tendo no final dessa década chegado também a princesa Joana da Bulgária e
Helena Karageorgevitch da Sérvia, irmã do Rei Alexandre da Jugoslávia. Por fim,
em 1946, chega o mais mediático de todos os exilados, que viveu até ao final da
sua vida na casa de Cascais, o Rei Humberto II de Itália, que no Estoril
desenvolve vasta obra de âmbito social. Numa notícia publicada pelo Jornal ‘A Nossa Terra’, no dia 15 de maio de 1964,
é possível ler uma nota emitida pela Rainha Maria José, indicando que desejava
voltar urgentemente a Cascais porque o ar que ali se respira, bem como as suas
águas termais, tornarão mais fácil e rápida a convalescença de Humberto de
Sabóia.
Don Juan de Bourbon y Battemberg
Para além destes,
não é possível deixar de mencionar Don Juan de Bourbon y Battenberg, filho do
Rei Dom Afonso XIII de Espanha e pai do actual rei Juan Carlos I; os Condes de
Paris; o escritor Stefan Zweig; o compositor Ignacy Jan Paderewsky; o escritor
Maurice Maeterlinck; e o eminente Mircea Eliade.
Em 1962, após
um percurso muito problemático que se iniciou com a morte do Rei Boris III da
Bulgária, ocorrida após um curioso encontro com Hitler em que este lhe
solicitou que assinasse um documento aprovando a deportação dos judeus búlgaros
para a Alemanha, chega ao Estoril a Rainha Giovanna da Bulgária, acompanhada
dos seus dois filhos, O Rei Simenon II e a princesa Maria Luísa. Filha do Rei
Vittorio Emmanuele II de Itália, a rainha pertencia à casa real de Sabóia, encontrando
no Estoril grande número de familiares também no exílio ou descendentes de
antigos membros casados em Portugal. Segundo Joaquim Baraona, numa abordagem
biográfica à estadia da Rainha da Bulgária em Portugal, esta personagem
reveste-se de uma importância fundamental, uma vez que se enquadrou, na
perfeição, em toda a dinâmica social do Estoril: «A Rainha Giovanna, pela
simplicidade, pela forma como se integrou e tem participado na comunidade, pelo
ambiente social que a envolve e pela dedicação ais problemas de solidariedade,
é uma das personalidades a quem além do respeito natural que merece, é dedicada
a maior atenção e carinho».
Rei Simenon II
Numa
entrevista publicada na revista ‘Estoril Image’, datada de 1989, o Arquiduque
Josef Árpád von Habsburg Lothringen, da antiga Casa Real da Hungria, refere-se
ao Estoril como um local de paz, onde, ainda criança, conseguiu readquirir uma
vida que a guerra havia destruído. Referindo-se ao que sentiu quando aqui
chegou acompanhado de alguns irmãos e de uma perceptora, as suas palavras
deixam transparecer alguma emoção face ao Estoril e à sua vivência: «A sensação
de maravilha, de ter voltado um pouco ao que tinha sido a minha infância. Havia
paz, uma natureza muito bonita, um ambiente de solidariedade e carinho. Mas
sobretudo – e não se deve esquecer que eu era apenas um adolescente – havia
comida; já não era preciso roubar batatas e assá-las numa fogueira no meio da
floresta, rodeados de neve e do troar dos canhões aos longe...» Referindo-se
especificamente ao Estoril, um pouco mais adiante, a principal palavra é
verdadeiramente a solidariedade que sentiu quando aqui chegou: «Durante os
primeiros tempos, vivemos de uma jóias que uma tia nossa, também refugiada em
Portugal, tinha trazido. Quando esse dinheiro acabou, funcionou uma cadeia de
solidariedade que é das coisas mais bonitas
e mais gradáveis que tenho visto na minha vida. As famílias do Estoril e
Cascais ajudaram-nos; abriram-se as portas para podermos ser educados e alimentados».
É
fundamentalmente este Estoril, misto de um verdadeiro sentimento de apoio, em
que se misturam as espionagens em torno dos diversos partidos, que melhor
caracteriza a vivência no local neste final da primeira metade do século XX. As
estruturas turísticas e hoteleiras que aqui que haviam criado, à semelhança do
que farão mais tarde quando a Paróquia vem retomar a responsabilidade de gestão
social do espaço, apoiam verdadeiramente a assistência social e dinamizam
correntes de solidariedade que, ultrapassando todas as barreiras políticas e
sociais, fundam o cerne daquilo que é hoje a qualidade deste espaço.