por João Aníbal Henriques
Existem tradições que ainda são o
que eram. Em Coimbra, o ritual diário das aulas na sua avoenga universidade é
marcado desde há muito pelo som produzido pelo balir da cabra e do cabrão, numa
vivência profundamente marcada na identidade da cidade e impregnada do sabor
firme da Portugalidade.
A torre da Universidade de
Coimbra, construída entre 1728 e 1733, com projecto de António Canevari, vem
substituir as instalações mais antigas e mais baixas que tinham sido
projectadas por João de Ruão. A sua função de orientadora da cidade universitária,
integra-se na fachada do pórtico principal, ostentando de forma gloriosa um dos
símbolos-máximos da Cidade de Coimbra e de Portugal.
A lenda da Cabra, necessariamente
anterior à construção do sino actual, está intimamente ligada à criação das
principais rotinas no seio da universidade coimbrã e o seu toque, desde logo
associada ao cumprimento de obrigações por parte dos milhares de alunos que por
ali passaram ao longo dos séculos, assume-se como verdugo que impõe disciplina
quando assim deve ser. É, por isso, um misto de raiva académica aquele que acompanha
o som compassado do velho sino, no qual se mistura a nostalgia que a vida de
estudante sempre acarreta.
As praxes e os rituais, hoje tão
polémicos pelas implicações que traduzem, mas geralmente mito menos exigentes e
cruéis do que aqueles que deram forma à academia coimbrã noutros tempos, são
organizados ao toque da cabra que, do alto da torre setecentista, se espraia
pelos cantos e recantos da cidade.
Ao nascer do dia, quando toca
pela primeira vez o sino instalado com a face virada para a baixa da cidade e
para o rio, a cabra toca acompanhada de um outro sino mais recente. De som mais
grave e num compasso diferente, o cabrão anuncia os tempos novos que o novo dia
que vai começar vai trazer. Datado de 1824, o cabrão acompanha ainda o sino
virado a nascente, denominado balão e datado de 1561.
O designativo de “cabra”, atribuído
pela turba estudantil mercê das implicações restritivas que o toque do sino tem
na sua vida quotidiana, acompanha de forma inexoravelmente a mística da
universidade e os próprios desígnios da Cidade de Coimbra. Provando que a tradição
é por vezes muito mais importante do que a própria realidade, e que dela
depende a identidade mais profunda e os próprios arquétipos de pensamento de
uma determinada comunidade, o toque da cabra confere à comunidade que por ali
passou um laço firme de coesão que o passar dos anos não consegue esbater.
Subir os quase trinta e quatro
metros de altura da torre da Universidade de Coimbra, vindo de perto o conjunto
sineiro da Cabra, do Balão e do Cabrão, é uma experiência única que altera a
percepção que temos da universidade, apresentando aos olhos do visitante o
esplendor soberbo de uma paisagem marcada de forma profunda e inabalável pela
saudades.
Coimbra e o Choupal, prenhes de
histórias que compõe a própria História de Portugal, é hoje ponto de visita
obrigatório para quantos queiram conhecer e perceber este país tão especial.