por João Aníbal Henriques
A monumentalidade do património
Português, mercê da grandiosidade dos estilos arquitectónicos e da riqueza do
património artístico, assenta sobretudo na ânsia permanente que o Homem sente
na sua busca pela eternidade. As grandes obras, definidas pelo carácter que
resulta do impacto que se imagina que terão sobre as gerações vindouras, é
quase sempre uma espécie de manobra desleal para enganar o tempo, eternizando
na pedra, nas cores e nos sons as memórias daqueles que a nós se seguirão na
implacável caminhada pelo Mundo que todos fazemos. Procura-se ficar marcado, na
ilusão de que as obras monumentais são a melhor forma de fugir ao inexorável
esquecimento imposto pela passagem do tempo.
Mas existem outros monumentos,
provavelmente imaginados e construídos por gente especial, que fogem a este
estereótipo. E, por vezes, nem por isso são menos eficazes na geração do
carácter extraordinário do impacto que provocam naqueles que os vão visitar.
É precisamente isto o que
acontece com o Monteiro de Santa Maria de Pitões das Júnias, situado no
Concelho de Montalegre na Serra do Gerês. A magnificência da paisagem
envolvente, aliada ao carácter minimalista do monumento, define um cenário de
profundo significado simbólico que, por sua vez, gera um impacto desmesurado
sobre os seus visitantes.
Construído originalmente no
Século VIII, ainda antes da formação da nacionalidade, o Mosteiro de Santa
Maria de Pitões das Júnias seguia originalmente os parâmetros de simplicidade
da Ordem Beneditina. Os afloramentos graníticos onde se insere, conjugados com
a força telúrica das águas que o envolvem e do verde imposto pela vegetação ali
existente, conjugam-se num quadro de grande isolamento, promovendo a
interioridade e a ligação directa à vontade de Deus.
Em Pitões das Júnias, nos
primeiros tempos após a sua construção, os frades que ali residiam dedicam-se
exclusivamente à pastorícia, dela dependendo para a sua mais basilar
sobrevivência. Perdidos nas penedias enormes que se erguem por aqueles ermos,
os religiosos entregam literalmente o corpo e a Alma à vontade do Pai, numa
ânsia de ascensão em cuja brutalidade dos elementos e da natureza encontravam
pistas que lhes permitiam desvendar os segredos do Universo. Era pois das
virtudes interiores, ressurgidas através dos exercícios espirituais que a
envolvência do mosteiro naturalmente promovia, que se consagrava aquele espaço,
do qual estavam apartados todos os apelos mais basilares dos instintos e, inclusivamente,
a humanizada vontade perene de perpetuação no tempo, cujo mote servia de motor
à religiosidade de outros lugares.
São os valores essenciais do
trabalho, da humildade e da oração, pilares estruturais da prática de São
Bento, quem melhor define o carácter pétreo deste extraordinário mosteiro.
Mesmo depois de ter passado a seguir a regra de Císter, seguindo a mesma lógica
de combate ao abandalhamento espiritual que Cluny estava a impor na Europa do
seu tempo, é na singeleza do assumir a pobreza e no desapego relativo à
materialidade, que os monges de Pitões das Júnias constroem o seu legado, bem
patente nas obras de remodelação da sua igreja e no carácter místico do seu
adro. Ainda hoje, quase mil anos depois desses tempos que nunca chegaram a
passar, se sente por ali o sopro fecundo do vento da montanha, recriando um som
de fundo que quase obriga ao recolhimento imediato. Sendo o mesmo que ouviram
os monges que ao longo de muitos séculos por ali deambularam, limpando-se das
negras memórias pessoais que cada um transportava e apelando em conjunto à
misericórdia imensa de Deus Pai, é crível que a eternidade se tenha imposto a
este lugar. Nas lajes que formam o seu chão antigo, ouvem-se ainda os passos de
todos os que por ali circularam. E nas paredes pétreas das ruínas de
sobreviveram à história longa pela qual passaram, ecoam os cânticos e o sopro
sibilino das orações que ali foram rezadas…
A invocação a Santa Maria, neste
caso específico à Senhora da Conceição, padroeira e Rainha de Portugal, conflui
da mesma maneira para um apelo quase herético à ritualidade mais ancestral. De
facto, se nos ativermos ao carácter profundo e simbólico desta construção,
depressa percebemos que o segredo mais perene daquelas paredes enegrecidas pelo
tempo, assenta num esforço de abdicação das causas comuns do Homem para tornar
possível a consagração dos rituais de limpeza que abrem a Alma e permitem
ascender à sabedoria divina. O caminho, mais do que o destino final, são aqui
assumidos como pedra angular, sendo que a evocação à Senhora da Conceição, rosa
crucificada pela entrega do seu próprio Filho aos desígnios do seu Pai, alimenta
uma dinâmica de Fé cuja sabedoria intrínseca aponta para a dualidade essencial
da existência da própria Alma humana. Com carácter profundamente individual,
este caminho é feito na rota da transitoriedade, tal como a vida e a morte, num
jogo do qual nenhum de nós se pode alhear, dita destinos para cada um
individualmente, que são transformados pela duração sempre curta da caminhada
que todos por cá teremos de concretizar.
Simples na sua formulação espacial,
até pelo carácter firme de São Bento e de Císter, é o isolamento que mais marca
a monumentalidade do espaço. Construído em estaleiros que aproveitaram os
materiais existentes no local, aprofunda o ascetismo primário dos que o
imaginaram e criaram, sublinhando o valor da entrega e a pobreza que
transversalmente caracterizou todos aqueles que por ali habitaram.
Abandonado no Século XIX, quando
foram extintas das ordens religiosas, o antigo mosteiro passou a ser utilizado
pela população local como Igreja Paroquial, perdendo progressivamente o
carácter simbólico que o transformava num sítio muito especial. A agrura do
clima, complementado com o carácter inócuo do comportamento da ribeiro que o
atravessa, foram paulatinamente degradando o espaço que é hoje uma mera ruína
que palidamente consegue traduzir a grandiosidade do que ali se passava.
O Mosteiro de Santa Maria de
Pitões das Júnias, ao qual se chega depois de uma caminhada de poucos mais de
dois quilómetros desde a povoação que lhe dá o nome, é uma das mais
extraordinárias pérolas do Património Nacional, sendo um dos mais inesquecíveis e impactantes
recantos encantados de Portugal.
Pena é (ou se calhar não) que se mantenha
tão longe das rotas normais dos muitos que visitam o Parque Nacional da
Peneda-Gerês e, sobretudo, da memória colectiva que corporiza da Identidade de Portugal.