por João Aníbal Henriques
A devoção a Santa Quitéria,
perdida entre a lenda da mártir virgem que deu a vida para não entregar o corpo
ao homem a quem o seu pai a tinha prometido em casamento contra a sua vontade e
a ligação provavelmente pré-histórica aos cultos ligados à fertilidade e às
tradições de origem agrícolas, encontra largo espectro no território português.
Em primeiro lugar porque, conforme
reza a sua história, a virgem Quitéria, última das noves filhas a nascer de um
único parto de Cálcia Lúcio e Lúcio Caio Otílio, o Governador Romano da
Lusitânia de então, nasceu em Braga no ano 120. Depois porque, apesar de o seu
martírio ter acontecido no actual território francês, ele vem cristianizar os
antigos rituais ligados à protecção dos gados em ambiente rural, tendo sido
adoptado na devoção popular com a santa cuja identidade aparece ligada ao
combate à raiva.
Mas o mais estranho é que, a
pouca distância de Lisboa, numa aldeia perdida no Concelho de Alenquer, a
devoção principal se desenvolve numa desmesuradamente grande basílica situada
na pequeníssima aldeia de Meca…
Quase parece, para quem ali chega
pela primeira vez respondendo ao chamamento de visitar uma aldeia com o nome de
uma das mais sagradas cidades muçulmanas, que a dita igreja é uma visão
provocada por alucinações! Pela sua dimensão, pela qualidade da sua
arquitectura, e pela localização privilegiada no centro do pequeno povoado
rural, o templo parece ter sido transplantado para ali, depois de ser retirado
de alguma sumptuosa cidade europeia.
Mas não foi. A Igreja de Santa
Quitéria de Meca, classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1949, foi
construída no Século XVIII, com desenho do ilustre arquitecto Mateus Vicente e
o alto patrocínio da Rainha Dona Maria I.
O local, escolhido por existir
uma lenda que diz que ali apareceu uma imagem de Santa Quitéria nos idos de
1238 da era Cristã, é o mesmo onde terá existido uma pequena ermida dedicada à
mesma santa e que terá sido construída em plena Idade Média para marcar o local
do milagroso aparecimento. Em frente à igreja, no adro actualmente atravessado
pela estrada nacional, existe ainda o cruzeiro em forma de redondel em torno do
qual se realiza anualmente o ritual da bênção do gado. Como desde há milhares
de anos, os agricultores das redondezas trazem para ali o seu gado, fazendo-o
circular em torno do dito cruzeiro, onde são abençoados em nome de Santa
Quitéria para evitar que contraiam a raiva.
Em termos arquitectónicos, a
magnificência do traço de Mateus Vicente, o mesmo que sublinha as
características da Basílica da Estrela, em Lisboa, da Igreja da Memória e do Palácio de Mafra, terá respondido à
devoção da rainha, que viabilizou a sua edificação, recuperando valores
estéticos próximos do barroco tardio, definindo um quadro artístico que denota
alguma continuidade relativamente ao que então se fazia em Portugal. A Igreja de Santa Quitéria, com a sua fachada
principal virada a Sul, ostenta uma placa gravada onde se refere que a
construção foi terminada em 1799 e que o templo se tornou Igreja Matriz em
1847. É também aí que surge a menção ao lendário aparecimento da imagem da
Santa no ano de 1238.
Mais interessante, mas de muito
mais difícil explicação, é a designação toponímica da localidade onde a igreja
foi erguida. Seguindo as orientações de alguns especialistas em fonética que se
dedicaram ao estudo do nome de Alenquer, que terá derivado de uma palavra
árabe, a ligação à cidade sagrada do Islão resultará da sacralidade da própria
envolvência. Apesar de existirem poucos vestígios arqueológicos desse período
no território em questão, a proximidade ao cone vulcânico de Alenquer, parte
integrante do património geológico da Serra de Montejunto, terá determinado o
desenvolvimento ancestral de sistemas complexos de ritualidade religiosa que
perpetuaram no tempo as crenças mais antigas que dão forma aos arquétipos da
humanidade.
O certo é que a aldeia de Meca,
em Alenquer, carrega consigo a marca perene das festividades da Primavera que
durante o período calcolítico foram peça angular na regulação das sociedades
humanas que vieram a desenvolver-se no actual território de Portugal. Cultuada
em Maio, em festivais de base religiosa marcados, até épocas muito recentes,
pela presença das flores e do viço próprio que marca o final do Inverno, Santa
Quitéria de Meca insere-se assim num conjunto de práticas religiosas que
corporizam o principal alicerce cultural da Portugalidade.
Distando pouco mais de 50
quilómetros de Lisboa, num trajecto marcado pela passagem obrigatória pelo
designado “presépio natural” de Portugal, ou seja, a Vila de Alenquer, impõe-se
uma visita a Santa Quitéria de Meca. Pela sua beleza, pelo impacto que produz a
quem se depara com a sua ostensiva e inesperada monumentalidade mas, sobretudo,
pela estranheza e enorme interesse da sua história.