por João Aníbal Henriques
O deslumbrante recanto onde se
situa a Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ericeira, envolvendo com a
perspectiva de um olhar a pitoresca Praia dos Pescadores e impondo-se
sobranceiramente à singeleza do casario branco pontilhado de riscas azuis, é
por si só um dos mais emblemáticos espaços daquela vila piscatória. Dividindo o
Norte e o Sul, quase como se do verdadeiro axis mundi se tratasse, servia
igualmente de elemento de orientação à navegação, salvaguardando a boa viagem
dos pescadores locais.
A devoção a Nossa Senhora da Boa
Viagem, comum nas comunidades de homens do mar que se foram instalando em todo
o território de Portugal, ganha na Ericeira foros de grande dignidade, facto
que se consubstancia na antiguidade da confraria existente no local e no
elevado número de devotos que anualmente a procuram para protecção nas suas
viagens.
Existente de forma comprovada
desde o Século XVII, quando ali se realizaram obras de recuperação que ficaram
gravadas junto à porta situada na fachada principal, é provável que a capela
fosse mais antiga e que tenha ali existido pelo menos desde o Século XV. Ao
longo da sua história, foi alvo de diversas obras e intervenções que a dotaram
do aspecto actual.
Simples na sua configuração
interna e utilizando o estilo chão próprio das comunidades piscatórias mais
pobres que habitaram a região de Lisboa, a Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem
possui ainda um segundo orago dedicado a Santo António. A devoção ao santo
taumaturgo, centrada numa confraria que lhe era dedicada e na qual tinham lugar
todas as raparigas solteiras das redondezas, é responsável pela designação
popular que ainda hoje subsiste e que a atribui ao santo lisboeta.
Em Outubro de 1910, depois de uma
última noite passada no Palácio de Mafra, o Rei Dom Manuel II e a Família Real,
embarcaram para o exílio na praia situada junto a esta capela. O último
vislumbre que tiveram da Pátria, num acto de entrega ao destino que foi adverso
às mais antigas tradições de Portugal, foi precisamente o da Capela de Nossa
Senhora da Boa Viagem, numa reviravolta insalubre da sua estratégia de inverter
o ciclo negativo que afectava o desígnio Nacional.
Nossa Senhora da Boa Viagem,
iconicamente ligada à faina do mar, carrega consigo a atitude de dependência
profunda perante as forças da natureza que os pescadores da Ericeira sempre
mostraram. Nela converge o plaino da Fé dos homens do mar e para ali são
dirigidas as preces assustadas das mulheres que ficam a guardar as suas casas.
Certamente por desígnio do
destino, é também nesta capela que se venera Santo António, também ele ligado
de forma marcante aos peixes e à força das águas, num discurso em que a posição
de fulcro, para onde convergem os opostos e os contrastes, se dissolve numa
amálgama sentida dos laivos da vida e da morte que ditam a condição humana.
É,
pois, de humanidade que nos fala esta singela capela. No seu espaço de luz,
sobranceira à extraordinária vontade de Deus e dos homens, dela emanam as
indicações que permitem o regresso a casa. Seja ela a casa de família do devir
quotidiano, ou seja ela a casa do Pai.