por João Aníbal Henriques
Assumindo a sua posição altaneira
relativamente à bonita vila de Portel, no Alentejo, o Castelo de Portel é um
dos mais extraordinários vestígios da origem cultural de Portugal e da ligação
profunda e arreigada às tradições ancestrais que deram forma aos mais
importantes arquétipos da humanidade.
Não se conhecendo de forma
documental a sua verdadeira origem, é crível que antes do início da construção
da actual edificação, ali existisse já uma fortificação anterior, provavelmente
de origem muçulmana, que daria corpo ao sustento da população que vivia naquele
espaço. Na documentação coeva da sua construção, a Casa Real Portuguesa
denomina a vila como ‘Portel Mafomede’, numa prática toponímica que aponta para
uma pré-existência islâmica cuja origem não será diferente daquela que noutras
zonas do actual território nacional terá conduzido à aculturação que forma a
Identidade Nacional.
A atribuição toponímica de Portel
a Mafomede, curiosa se pensarmos que a diabolização da expressão resulta do
processo de extinção da Ordem dos Cavaleiros Templários, assume foros de grande
importância quando nos debruçamos sobe a origem do castelo. Em primeiro lugar
porque, como se sabe actualmente, a figura da Mafomede ou Bafomet, representa
basicamente as três formas de expressão primordiais da matéria. No Convento de
Cristo, em Tomar, a figura de Hermes Trismegisto é representada numa das pedras
angulares da edificação representada como Bafomet com as suas três faces
reinantes. Depois, porque a divinização trina que Bafomet compõe, juntando num
mesmo plano as diversas faces que apresenta Deus na sua expressão simbólica de
eixo estrutural da humanidade, uma reposição dos antigos cultos pagãos de
origem Grega que, compondo o seu corpo de saber sobre os rituais ancestrais que
acompanharão a evolução humana na bacia do Mediterrâneo, nos levam até à figura
do Deus Pã, complexão estática do sopro deífico que dá forma lendária à origem
de muitas das mais importantes povoações de Portugal.
No Grego antigo, por exemplo, a
expressão Baph Metis, significa literalmente o “baptismo da sabedoria”,
sabendo-se ainda que a mesma expressão em hebraico, utilizando a codificação
cabalística, significa Sophia, ou sabedoria…
Em qualquer dos casos, o Portel
que hoje temos, foi outrora o Portel Mafomede, num fluxo generalizado de saber
oculto, que determinou o processo de reconquista Cristã em que se insere a construção
do castelo actual e, mais importante ainda, a definição dos equilíbrios
político-administrativos no recém-criado Reino de Portugal.
De facto, quando em 1257 o Rei
Dom Afonso III entregou a João de Aboim as terras de Portel Mafomede,
determinando o início da construção do castelo e retirando-as ao Termo de
Évora, o que está em causa é a preservação do controle político deste
importante território. Para além de impor uma dinâmica concertada no que
concerne ao processo de reconquista, a doação e posterior construção da
estrutura amuralhada reforçam ainda o poder político pessoal do novo rei,
depois da conturbação política que ditou o afastamento do seu irmão, o anterior
Rei Dom Sancho II. Portel surge assim como axioma de referência, na definição
daquela que virá a ser a intervenção política da Casa Reinante, e que durará
até ao fim da Primeira Dinastia, em 1385.
João Peres de Aboim, de origens
minhotas e filho do senescal do Rei Dom Sancho II, é apresentado na
documentação ceva como “um fidalgo violento e insaciável que saqueava sem mercê
os bens dos municípios e dos seus moradores”. A sua proximidade ao infante Dom
Afonso, com o qual ruma a França onde preparam a revolução que ditará a subida
ao trono deste, acabará por granjear-lhe um poder sem igual, que manterá mesmo
depois da morte do rei e durante todo o período em que durou o reinado de Dom
Dinis.
As obras do castelo de Portel,
prolongaram-se também ao longo das décadas seguintes, acompanhando a mudança
radical introduzida em Portugal pelo Rei Trovador, sempre acompanhado de perto
por João de Aboim que preserva as honras inerentes a facto de ter sido
Mordomo-Mor do Reino.
O rei Dom Dinis, o alquimista
assumido que planta as naus que desde Leiria darão novos mundos ao Mundo, é
assim o verdadeiro Hermes Trismegisto de Portel, consagrando nas suas três
faces de político, poeta e mágico a apetência para transformar aquele espaço na
referência primária da consolidação do cristianismo herético da Ordem de
Cristo, na pedra angular da Identidade Nacional. Não é por acaso que, quando
Mafomede é utilizado como argumento no julgamento que ditará a extinção dos
Templários, dizendo-se que representa um culto satânico de cujo poder depende o
sucesso militar e religioso da ordem liderada por Jacques de Molay, em Portugal
é o Rei Dom Dinis que contorna as directivas papais criando a nova Ordem de
Cristo para a qual transitam os bens templários existentes em Portugal e, possivelmente,
os próprios directores espirituais da antiga ordem.
De qualquer maneira, depois da
morte do Rei Dom Dinis e do construtor do castelo, a contenda jurídica que
envolve os seus herdeiros acaba por decidir a recuperação da propriedade por
parte do Estado e, em 1384, a sua entrega ao Condestável de Portugal, Dom Nuno
Álvares Pereira, que junta as terras de Mafomede ao património do que há-de vir
a ser a Casa de Bragança.
O Santo Condestável, nessa altura
já transformado em Frei Nuno de Santa Maria, obreiro da magnitude enorme da
Ínclita Geração e concretizador do projecto alquímico plantado pelo Rei Dom
Dinis, trabalha sob o signo da flor-de-lis, sob a tutela de Dom João I, o
Mestre de Avis, transformando Portel num verdadeiro caldeirão alquímico no qual
tudo pode acontecer. A mítica transmutação da matéria, epíteto maior que
resulta da posse do segredo da pedra filosofal, conduz no recato de Portel à
transmutação das almas. Mafomede, com as suas três faces, nada mais é do que o
simbólico arquétipo da Santíssima Trindade, consolidando pelo verbo do Pai e o
pão que se transforma em carne, do seu Filho, a força maior transformadora que
concebe o Espírito-Santo. E este, por seu turno, subvertendo a realidade e
condecorando como Rei o mais humilde dos seus servos. Como se vida e morte
fosse uma realidade só!
Depois de perdida a sua utilidade
militar, o Castelo de Portel foi entrando num paulatino processo de ruína que
culminou, já no início do Século XX, com as primeiras campanhas de reconstrução
que o dotaram do aspecto actual.
Durante a vigência do Estado
Novo, num processo conduzido pela então Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais, foi recuperada a sua vocação romântica, introduzindo-lhe uma cortina
de ameias que, em conjunto com a adaptação da sua Torre de Menagem, lhe
alteraram a estrutura e o adaptaram à vocação turística que então se assumiu
para Portugal.
O Castelo de Portel, pleno de
potencial turístico e cultural, está hoje aquém daquilo que poderia ser na
definição da memória colectiva do Alentejo e de Portugal. A sua importância
efectiva e o simbolismo que agrega, fazem dele uma peça essencial para se
perceber quais são os desígnios nacionais e a forma como nestas paragens se
encontram os resquícios mais profundos da nossa Identidade Nacional.
Pode ser que um dia alguém se dedique novamente a este recanto tão especial de Portugal.