por João Aníbal Henriques
A Igreja de São Vicente de
Alcabideche é o principal monumento religioso daquela importante freguesia de
natureza rural do Concelho de Cascais. Embora seja de origem recente na sua
formalização histórica, uma vez que as primeiras referências que sobre ela
existem são do Século XVII, quando ali foi fundado o Compromisso do Santíssimo
Sacramento, terá sido muito provavelmente antecedida por outros espaços de culto
dos quais se perdeu memória.
Sucessivamente destruída por cataclismos
naturais, nomeadamente pelo grande terramoto de 1755, o templo foi várias vezes
reconstruído e adaptado, chegando assim à formulação singela e em estilo chão
que actualmente apresenta.
O espaço onde o templo foi
construído, num dos pontos estrategicamente mais relevantes da antiquíssima
localidade de Alcabideche, deixa antever os vestígios daquilo que foi a Igreja
de São Vicente noutras épocas e até em períodos em que existiam outras formas de
religião. Em redor da capela, num espaço repleto de vestígios arqueológicos
cronologicamente situados entre o Neolítico, o período Romano e a modernidade,
foram encontrados vários vestígios de construções anteriores. Ainda hoje,
encastrados nas paredes antigas das casas do largo e mesmo no interior do
templo, existem várias lápides, estelas discóides e cantarias que comprovam a
utilização antiga daquele espaço.
Na nave da igreja, situada à
entrada logo a seguir à Pia Baptismal, está colocada uma antiga estela
medieval, ostentando a Cruz de Cristo e a Flor-de-Lis, num apelo sentido à
profundidade cultual de Alcabideche. Noutros pontos, fruto da reutilização de
materiais que foram recuperados de ruínas que a precederam, existem vários
exemplares de cantaria trabalhada manuelina, evidenciando que a data
setecentista que se aponta como origem do templo, nada mais representa do que
um dos momentos de reconstrução do mesmo.
A ligação a São Vicente, na linha
da complexa orientação da Identidade Municipal de Cascais, recupera os valores
essenciais da ocupação islâmica de Alcabideche. A temática dos corvos, que
lendariamente terão impedido o corpo do mártir cristão de ser devorado
pelos abutres, surge num contexto simbólico bem visível na história da localidade.
Alcabideche, ou Al-Qabdaq na sua grafia árabe, está desde há muito ligada às
dinâmicas da natureza que se espraiam nos ciclos agrícolas e na dependência da
fertilidade. Quando Abu Zaid Abd-Arh Ramãn Ibn Mucane cantou os moinhos de
vento de Alcabideche, já eram as aves de rapina, enquanto repositório do rol de
preocupações que toldava a felicidade quotidiana da população, as referências
essenciais num apelo sentidode dependência da terra e dos frutos que ela dava.
O corpo do mártir São Vicente, e
a sua aventurosa viagem de partidas e retornos por terra, pelo ar e pelo mar,
nem sequer escapou à ira do fogo, cuja dimensão simbólica nos arrasta de forma imediata
para os mais complexos universos da purificação e expiação dos pecados mortais.
Alcabideche é, dessa forma,
espaço de limpeza espiritual, num plano que o Cristanismo foi capaz de integrar
no dia-a-dia da comunidade. A Igreja de São Vicente, testemunha antiga dos
rituais de outrora, é também ela ponte de ligação entre as muitas gerações que
sucessivamente vêm vivendo a sua vida nesta localidade, consolidando um pleito de cidadania que faz convergir vontades e formas de estar.