Eu sou aquelle, que Cascaes já vi,
eu sou o que Cascaes não vejo já,
de quanto era dantes fumos dá,
e tudo he fumo o que contém em si.
Frei António do Espírito-Santo
Mestre de Filosofia do Convento de Nossa Senhora da Piedade
em Cascais
1756
por João Aníbal Henriques
Eram 9h45 da manhã desse dia 1 de Novembro de 1755 quando a Vila de Cascais viveu o pior cataclismo da sua História. Depois de um início de dia calmo e ameno, que fez sair a população das suas casas para se dirigir às igrejas e capelas para assistir à Santa Missa do Dia de Todos-os-Santos, começaram a ouvir-se ao longe os rugidos tremendos oriundos das entranhas da terra e a sentir-se os primeiros tremores que anunciavam o terror que estava para vir.
Assustados, os Cascalenses de
então refugiram-se na oração e, de dentro dos espaços sagrados de Cascais,
assistiram incrédulos à completa destruição da sua terra. À medida que os
abalos iam aumentando, fazendo cair pedras e as paredes velhas, aumentava o
clamor do rugido que se ia misturando com a gritaria enlouquecida da população
com a visão turvada pelo medo e pela morte. E como se não bastasse, porque a
natureza foi especialmente truculenta naquele dia nefasto, num instante
transbordaram as águas da Ribeira das Vinhas que encheram a vila e provocaram
afogamentos sem igual. O mar, enraivecido também ele pelo desastre que se
abatia sobre Portugal, galgara os rochedos e entrava livremente em Cascais, esmagando
com a sua força muitos daqueles que procuravam sobreviver à desgraça geral.
Não tendo outro local para onde fugir, um grupo de Cascalenses refugiu-se dentro da frágil Capela de Nossa Senhora da Conceição, ali procurando a protecção divina contra a desgraça que imperava ao seu redor. Unidos pela sua Fé, fizeram um voto a Nossa Senhora dos Inocentes pedindo protecção contra o desastre que enfrentavam. E, tendo sido ouvidos pela Senhora da Conceição, que logrou salvar a singela capelinha dos fenómenos desastrosos que por todos os lados a atacavam, salvaram-se todos os que ali se tinham abrigado. Agradecidos pela mercê, criaram uma irmandade que tinha como principal objectivo o cumprimento do voto feito a Nossa Senhora, consignado numa Procissão que aconteceu anualmente até 1920, sempre com a presença de todo o povo de Cascais.
O milagre de Nossa Senhora da
Conceição dos Inocentes, perpectuado em Cascais através da singela presença do
antigo templo, é marca perene da devoção ancestral dos Cascalenses à
sacralidade primordial da Senhora da Conceição. Simbolicamente agregada aos
arquétipos ancestrais da fertilidade, congregando em seu torno o papel de mãe e
protectora que ilumina aqueles que têm Fé na sua mensagem, a ritualidade
mística que envolve esta devoção é inquestionavelmente um dos alicerces
principais da vivência sagrada da vila de Cascais.
Não se conhecendo com rigor a
data de construção da capela, mas inferindo que o ano de 1609 que consta no
cruzeiro construído ao seu lado poderá corresponder ao início da sua
edificação, a Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Inocentes, para onde se
transferiu o culto religioso depois de o terramoto ter destruído quase por completo
todas as restantes igrejas e capelas da vila, apresenta uma planta simples à
qual foram adicionados, já em meados do Século XIX, os dois corpos laterais, em
linha com aquilo que era a tradição mais antiga da religiosidade de raiz rural
que proliferava junto da população.
Passando hoje bastante
despercebida no caminho de veraneio para o paredão, a Capela de Nossa Senhora
da Conceição dos Inocentes carrega consigo uma das principais memórias de
Cascais e aquela que é a pedra basilar da Identidade Municipal dos Cascalenses.
O milagre de Novembro de 1755, quando se passaram já 261 anos desde aquela
manhã faídica, é a prova cabal da ligação dos Cascalenses ao poder da Fé e à
inequívoca capacidade que sempre demonstraram ter de viver de forma assumida os
valores e os princípios que nortearam o seu devir existencial.