por João Aníbal Henriques
Profundamente ligada ao trabalho
da pedra, numa zona do Concelho de Cascais onde as pedreiras e os ofícios de
cantaria assumiam especial importância, a Igreja de São Domingos de Rana é um
dos mais importantes imóveis históricos que fazem parte do Património
Cascalense.
Sem se conhecer a data da sua
fundação, nem tão pouco se a antecedeu qualquer outra espécie de espaço de
culto ou edifício sagrada que tenha anteriormente ocupado o alto da colina onde
se ergue este templo, remete para a lenda e para as tradições orais as
principais indicações que nos permitem compreender o imóvel no contexto da
religiosidade rural do interior do Concelho de Cascais.
Reza a lenda que, algures durante
a Idade Média, os trabalhadores que tiravam pedra das muitas pedreiras
existentes nesta zona, viam amiúde a figura de São Domingos de Gusmão passeando
reiteradamente por aquela zona. O santo, historicamente nascido em Castela em
Junho de 1170 e que foi fundador da Ordem dos Pregadores, mais tarde conhecidos
como Dominicanos, está ligado de forma directa aos rituais de despojamento que
determinam a essência sagrada do culto Cristão em Portugal.
Depois de ter viajado ainda muito
novo até à Dinamarca para participar no acto solene de trazer para a Península
Ibérica a noiva Escandinava do Príncipe de Castela, São Domingos terá ficado
profundamente impressionado com a falta de conhecimentos que aqueles povos
teriam de Cristo e da sua doutrina. Nasce-lhe assim, num acto de inspiração que
muda vida até à actualidade, a ideia de criar uma ordem cujo objectivo
essencial seria o de evangelizar esses territórios, conquistando Almas novas
para o orfeão Cristão. As dificuldades, no entanto, associadas a várias
experiências que o ajudaram a despertar os sentidos e a clarividência,
mostraram-lhe que o Ser Humano não é naturalmente bom nem tem uma natural
propensão para a bondade. Pelo contrário! O apelo do mal e da maldade,
reconhecido nos mais mesquinhos apontamentos da vida de cada comunidade, mostraram
a São Domingos que o único caminho possível em direcção ao Céu e a Deus, era o
da abdicação total e absoluta à mundanidade e à materialidade da vida corrente,
como forma de propiciar a libertação do anjo sagrado que o Santo considerava
que existia dentro de cada um e que se mantinha subjugado pelas tentações
carnais do mundo e da sociedade.
Domingos de Gusmão, com
influência existencial marcada pelo ideário cátaro, liberta-se assim das
pulsões da natureza e determina uma ordem na qual o afastamento do mundo e das
coisas é a regra principal. A Ordem de São Domingos, mendicante de origem, é
assim o repositório mais profundo da ancestralidade mística de Portugal, num
plano de existência na qual a iluminação advém directamente da capacidade de
libertar o espírito do que da compilação da doutrina conventual.
A propensão para locais
recônditos e remotos, dos quais fosse possível obter uma visão periférica e
exterior do mundo, surge em sequência com a escolha lendária do local onde
havia de vir a ser erguida a Igreja de São Domingos de Rana. No cimo da colina
de Rana, da qual é possível abarcar uma paisagem que se estende por terra e
pelo mar ao longos de muitos quilómetros de distância, a actual igreja motiva o
eremita a uma comunhão directa com Deus através de um esforço de contemplação
do qual não está alheada a entrega total e absoluta aos ideias de despojamento
que serão sempre apanágios das mais iluminadas e marcantes figuras da História
de Portugal.
Em termo históricos, a Igreja de
São Domingos que hoje temos é o produto dos restos da antiga igreja construída
no início do Século XVIII e que foi amplamente destruída pelo terramoto de
1755. Há, no entanto, notícia, de que antes dessa data, já em meados do Século
XVI, ali existia um templo Cristão, cujas origens documentais se desconhecem.
A qualidade dos materiais da
igreja, até por ser esta uma terra de canteiros e de pedreiras florescentes, dão
corpo a um dos mais importantes monumentos do Concelho de Cascais. A sua
fachada, altivamente erguida com vista para Sul e para o Estuário do Rio Tejo,
denotada uma riqueza arquitectural que destoa da pobreza tradicional das
povoações da envolvente. As suas duas torres sineiras, uma das quais ostentando
um vetusto relógio de Sol, enquadram-se nos padrões construtivos que deram o
mote à reconstrução do concelho nos finais do Século XVIII e início do Século
XIX; apresentando um porte altivo que contrasta com a singeleza do seu
interior.
Em termos territoriais e devido à
posição estratégica que ocupa perante o território que a envolve, a Igreja de
São Domingos de Rana foi sempre referência essencial para a navegação, servindo
de guia para as entradas e saídas da Barra do Tejo.
Concretizando na solidez do seu
porte a Fé dos habitantes de São Domingos de Rana, a igreja de São Domingos é
um dos mais interessantes atestados do poder que a devoção tem na formação das
comunidades locais, tendo sido ela o principal factor determinante da criação
da própria localidade que a envolve.