por João Aníbal Henriques
Lázaro, o personagem bíblico
irmão de Marta e de Maria e que era amigo pessoal de Jesus, é uma das figuras
cujo significado transcende largamente a sua história, carregando consigo o
peso de representar a humanidade como um todo.
O seu nome, oriundo de uma antiga
expressão grega cujo significado literal é “aquele a quem Deus ajudou”,
conjuga-se com a excepcionalidade do que lhe aconteceu durante o processo de
convivência íntima com o Deus Encarnado, na sua entrega total ao projecto de
recuperar os homens dos seus pecados maiores. Tendo morrido de forma repentina
antes de o amigo Jesus ter conseguido chegar a sua casa, na antiga aldeia da
Betânia, Lázaro foi ressuscitado dos mortos pela intervenção directa do Filho
de Deus, num acto que simboliza o poder maior e total que a expressão física da
divindade possui sobre toda a matéria.
O homem Lázaro, perdido pela sua condição
perante as leis da natureza e do homem, ultrapassa a corrupção da própria carne
por ordem do Senhor. E o milagre maior, cujo sustentáculo se apropria da
própria expressividade absoluta da Fé, conjuga-se no presente, não adiando para
um tempo em que já não existirá tempo a resolução do problema que nos afecta
actualmente.
É costume dizer-se que tudo tem
solução excepto a morte. Mas Lázaro, do fundo da sua tumba e perante as
testemunhas concretas que assistiram a toda a cena, comprova que nem a morte supera
a força absoluta de Deus, oferecendo assim a toda a humanidade que sofre um
testemunho pessoal e sentido de que é possível ultrapassar todos os percalços
que vida nos trás.
É certamente este o significado
mais profundo que surge por detrás da construção da pequena Capela de São
Lázaro, situada naquela que foi a antiga gafaria de São Pedro de Penaferrim, em
Sintra. Sem se conhecer em concreto a data da sua fundação, mas que certamente
precede o início da própria Idade Média, a gafaria de Sintra foi um dos mais
importantes guethos para colocação de leprosos na Região de Lisboa, tendo
acolhido milhares de doentes durante os seus muitos séculos de existência.
Perfeitamente circunscritos
dentro da área protegida da gafaria, os doentes estavam proibidos de contactar
o resto da população, vivendo em exclusão social até ao final dos seus tempos.
Em Sintra, tal como acontecia com outras gafarias noutras zonas do País, os
gafos podiam receber autorização para sair do espaço de retenção e para
vaguear, quase sempre para irem pedir ajuda às casas mais ricas da região,
desde que utilizassem um sino que os identificava como doentes permitindo ao
resto da população evitar o contacto e o contágio da doença.
Em São Pedro de Sintra restam
muito poucos vestígios da antiga gafaria que teria ocupado o espaço central da
população actua, mas escavações realizadas recentemente no local, permitiram
encontrar sepulturas na zona do actual terreiro da feira, o que ajuda a
perceber que a zona residencial, o espaço de culto e o cemitério anexo se
circunscreviam a uma zona muito restrita nas imediações da actual capela.
De planta muito simples e com uma
espacialidade absorvida em absoluto pela sua única nave aberta para o adro que estava
virado a Norte, ao contrário do que acontecia com outro tipo de espaços de
culto de índole diversa, a Capela de São Lázaro actual será provavelmente do
Século XVI, quando a Rainha Dona Leonor ali terá mandado efectuar uma campanha
de obras com vista à sua renovação. São dessa época o escudo de Dona Leonor que
encima a sua fachada e os bocetes que fecham a abóboda do Altar. Sabe-se, no
entanto, que quando se procedeu a esta campanha de obras a capela já existiria
e o Visconde de Juromenha, num dos seus trabalhos sobre Sintra, conclui que em
1409 “já excedia a memória dos homens a fundação desta gafaria”.
Sendo um exemplar único daquilo
que foi o complexo social de São Pedro de Sintra, e ilustração privilegiada da
preocupação e cuidados que a lepra lançou sobre Portugal, a Capela de São
Lázaro de Sintra é um monumento de primeira importância na definição da memória
histórica sintrense.
A ligação ao imaginário simbólico
do Santo, partilhando com os viventes as agruras de uma existência sem
esperança e um futuro muito incerto, conjuga-se neste recanto de forma
excelente. Os antigos gafos sintrenses, de corpo corrompido pela doença e de
Alma certamente acabrunhada pelo abandono social a que eram devotados,
encontravam neste espaço de culto e na presença espiritual de São Lázaro, uma
ponte emocional com a existência plena que auguravam alcançar quando chegassem
ao céu. A capela de São Lázaro é assim, ao mesmo tempo, um espaço de culto e um
portal que ajudava a ultrapassar as vicissitudes impostas pelo tempo.
Integrada no reduto manuelino e
proto-medieval de São Pedro de Sintra, merece não só uma visita demorada como
sobretudo um estudo mais aprofundado que permita estabelecer com rigor a
dinâmica que determinou o devir histórico deste estranho e importante recanto
da região.