por João Aníbal Henriques
Em 1950, depois de muitos séculos
de polémicas discutidas de forma aguerrida no seio da Igreja, o Papa Pio XII
decreta oficialmente o dogma da Assunção de Nossa Senhora aos Céus. Pondo fim à
problemática Dormição da Virgem, cujo entendimento mais antigo inferia que
Nossa Senhora havia morrido naturalmente sendo posteriormente elevada para os
céus, o Papa contraria a ortodoxia vigente e assume mais um dos ancestrais
mistérios da Cristandade.
Nossa Senhora, denominada Teotóco
na tradição primeva dos primeiros anos do cristianismo, numa ambígua
significação que identifica simultaneamente a mulher Maria e a “portadora de
Deus”, é figura maior na definição arquétipa do pensamento Português, dela
emanando grande parte do “sopro divino” que orienta a Fé e a identidade do povo
de Portugal. De facto, da cultualidade antiga que desemboca nos cultos marianos
Cristãos, derivam grande parte das práticas rituais da Igreja Lusitana,
representando tantas vezes (quase sempre em momentos cruciais da vivência
religiosa Cristã) posicionamentos profundamente heréticos face àquelas que são
as directrizes principais da Igreja Romana.
Muitos anos antes do decreto
papal que determina a Assunção de Nossa Senhora, comemorada de forma simbólica
no dia 15 de Agosto de cada ano, já em Portugal existia uma Fé profunda neste
mistério ancestral, concretizada em obras, práticas e intenções que, mais do
que fruto das desventuras do quotidiano, representavam um sólido alicerce para
o corpo divino de sabedoria que sempre acompanhou a existência do País.
Proliferando em todo o território nacional, em capelas, ermidas e igrejas que condicionam
de forma eficaz as dinâmicas de Fé de Portugal, são muitos os vestígios
arcaizantes da presença deste culto, representando a manutenção adaptada de
ancestrais cultos relacionados com a fertilidade.
Num dos mais profundos recantos
do Alentejo, ali onde a brancura do casario se assume como única arma na luta
incansável contra o calor do Estio, ergue-se de forma sublime e inesperada um
das mais impactantes igrejas dedicas à Senhora da Assunção. Na localidade de
Safara, a poucos quilómetros de distância de Moura e de Barrancos, a pequenez
cálida da pequena povoação contrasta de forma evidente com a imensidão
monumental da sua igreja Matriz, num plaino de abandono da lógica que não
permite perceber de imediato a razão de ser da existência de tão estranho
monumento.
Construída de raiz algures entre
1500 e 1604, aprofundando o conceito de igreja-salão, a Igreja Matriz de Safara
tem inovação de Nossa Senhora da Assunção e utiliza na sua decoração a substância
primordial do Manuelino tardio Português. Austera no assumir dos valores
patentes na tratadística Serliana, na qual o espaço para a humildade se compõe
a partir dos valores tradicionais da arquitectura envolvente, a igreja assume o
contraste entre a sua eminente monumentalidade e a pequenez antiga da povoação
onde se insere.
Com três naves com cinco tramos
que estendem o espaço de oração reservado aos fiéis, conjuga a simplicidade da
sua planta com a qualidade extrema da decoração. De facto, associada à
azulejaria, as paredes laterais cobrem-se de frescos polícromos pintados
directamente na argamassa, em composições estranhas que lembram aos fiéis as
chamas eternas do inferno final…
Submissa aos cânones de Roma, facto
evidente na formulação canónica do seu espaço principal, a Igreja de Safara
desenvolve abordagem de cunho onírico em várias das suas componentes. Na
fachada principal, por exemplo, cruzam-se as notícias do pecado original,
associado à presença da cobra que enche o imaginário colectivo da região, com o
carácter arredio da simbólica da cruz quase taoista que dá forma ao corpo
principal. Tendo sido constituída como Priorado da Ordem de Avis, logo no
início da segunda metade do Século XII, mais se estranha esta imagética que
delega no povo a responsabilidade ancestral pelo pecado e pelo apelo à sua expiação.
Será provavelmente essa a explicação
para a incomensurável amálgama de contradições que o templo ostenta, relevando
para um segundo plano a temporalidade associada a cada concretização. Tendo
sido edificada sobre uma provável ermida antiquíssima que por ali já havia
existido, é natural que o edifício incorpore valores estéticos e decorativos que
resumem essa sobreposição, relevando assim os traços associados a uma
continuidade vivencial da Fé, ao invés da sempre desagradável crispação que
resulta da quebra na estrutura local de crenças e costumes. E será também essa
a razão, porque a presença árabe na zona de Safara é muito evidente, que
explicará alguns traços de uma anterior mesquita que terá partilhado o cunho sagrado
deste importante lugar.
Certo é, pela observação directa
daquilo que hoje vemos em Safara, que a Igreja Matriz dedicada a Nossa Senhora
da Assunção parece não caber naquela localidade. Não só pela dimensão excessiva
do seu corpo principal, cuja notoriedade se espraia por todo este trecho do
Alentejo Interior, como pela formulação da sua composição decorativa. Assumindo
a teatralidade da sua fachada recuada, como se se tratasse de um novo começo
(ou de um recomeço) ao nível da nossa capacidade de interpretar a realidade que
ali somente transparece, é Nossa Senhora da Assunção que, da dormição sagrada
que lhe aconchegou os sentidos depois dos anos difíceis da sua travessia
terrestre, se prepara para se elevar aos céus…
Da mesma forma que a morte se
apresenta como o castigo latente para o pecado de todos os dias, a concepção
imaculada de Nossa Senhora livram-na do flagelo da morte física, num plano de
transmutação da matéria que se afigura profundamente alquímico. A Mãe de Jesus,
venerada no actual território Português desde muitos milénios antes do seu
próprio nascimento (?) concebeu de forma miraculosa, transformando espírito em
carne e permitindo (e aceitando) que essa mesma carne se transmutasse também
ela em espírito. Por isso, nada mais natural do que a elevada concepção da
subida aos céus em corpo e Alma, num exercício de fruição da sacralidade
extrema associada à própria existência de Nossa Senhora.
A Senhora da Conceição, padroeira e Rainha de Portugal, que foi concebida e concebeu sem a mácula do pecado
original, contorna as leis da física e da vida para assumir a sua divindade
através da capacidade de controlar de forma consciente o acto da criação com o
qual a humanidade cresceu. Mas, ao contrário do que é mote na devoção popular,
nunca Nossa Senhora se multiplicou nas devoções imensas que o seu povo lhe
ofereceu. Pelo contrário. A evolução natural do seu estado superior, numa
entrega que alcança a sublimidade maior por ser ela própria maior do que a vida
e do que o próprio universo no seio do qual foi erigida, concretização pela
transmutação dos seus estados de consciência, num exercício no qual Ela é sujeito
passivo e totalmente entregue nas mãos e à vontade de Deus.
Nossa Senhora da Assunção de
Safara é assim enorme. Basicamente porque só assim se pode entender a dimensão incomensurável
do milagre sagrado da sua Assunção dos céus, numa prática ancestral que ficou
como herética até praticamente à segunda metade do Século XX...
É este o mistério maior de Portugal. E em Safara, no coração do Alentejo, ele vê-se, vive-se e sente-se.