por João Aníbal Henriques
Dizem que santos de porta não
fazem milagres… basicamente porque depois do Concílio de Trento, a disposição
das figuras sacras dentro de uma qualquer igreja ou espaço religioso passou a
obedecer a regras bem definidas, nas quais a hierarquia celeste ia crescendo na
medida em que nos vamos aproximando do Sacrário.
Mas Santa Maria da Porta, orago
da principal igreja de Melgaço, no Minho, representa a mais profunda
contradição relativamente a este princípio. De facto, assente na profundidade
escatológica que acompanhou a formação de Portugal, o orago minhoto integra a
generalidade dos arquétipos essenciais que deram corpo à nacionalidade,
representando porventura um dos melhores exemplos que subsiste da criação de
ponte relacionais com a cultualidade ancestral nesta parte da Península
Ibérica.
A Senhora da Porta, ou seja,
aquela que guarda as entradas e as saídas de um determinado espaço, é
simultaneamente causa e consequência do porvir quotidiano de uma comunidade. É
dela que dependem os habitantes do local, sendo do seu carácter sacro, bem como
da sua capacidade alquímica de transmutar as almas, que resulta o processo de
passamento final dos mundos, num trâmite que não se concebe senão à luz das
consequências sempre nefastas do pecado original.
Para os habitantes de Melgaço –
Melgazo na sua grafia original -, Santa Maria maior ficava à porta, sendo para
ela que convergiam as dinâmicas sociais de criação da própria localidade. No
Século XII, quando surgem documentalmente as primeiras referências do povoado,
marcava a sua diferença relativamente à outra igreja local, esta dedicada a
Santa Maria do Campo, reformatando a ligação entre os seus fiéis e as novas
práticas trazidas ao dia-a-dia do burgo em consequência do processo de
independência de Portugal. A imagem de Nossa Senhora, simultaneamente mãe de
Jesus e padroeira maior de Portugal, reforçava assim os seus vínculos milenares
(provavelmente pré-Cristãos) com a Fé avoenga das terras nortenhas.
Construída à porta do antigo
castelo, e marcada pelo estilo arquitectónico coevo, de um românico prenhe de
apelos telúricos à força da pedra e ao peso das tradições ancestrais, a igreja
nasceu por iniciativa do Arcediago de Valares, D. Garcia, que guardou para si,
com autorização do Abade de Fiães, com a terça parte do padroado.
Muito desvirtuada na sua
formulação estética em consequência das muitas intervenções de que foi alvo ao
longo dos seus quase 900 anos de história, a Igreja de Santa Maria da Porta
representa de forma muito evidente o carácter vincadamente significante que
Melgaço sempre representou na estratégia de defesa das fronteiras de Portugal.
A fragilidade dos primeiros tempos de nacionalidade, associados à proximidade
da fronteira e às constantes investidas das tropas inimigas, fez de Melgaço um
bastião essencial na defesa do reino, facto que terá condicionado de forma
cabal a sua estrutura urbanística, e sobretudo a eminente necessidade de
reforço e resguardo do seu castelo e da sua cinta de muralhas.
Singela na forma como se
apresenta perante o visitante, a igreja é ela própria um testemunho vivo da
força e da determinação daqueles que ao longo de muitos séculos ousaram viver
neste lugar, sofrendo na pele as vicissitudes de decisões emanadas de muitos quilómetros
de distância. Do alto do seu campanário, espécie de torre de vigia coeva dos
primeiros anseios de Portugal, é possível vislumbrar aquilo que terá sido o
Minho nessa época tão importante. Na torre sineira, colocada de forma recuada
relativamente à fachada principal, é possível ainda hoje ler as assinaturas dos
Portugueses de antanho que modelaram a pedra para construir esta igreja sem
igual.
De nave única, marcada hoje pelo
telhado de madeira que nos leva até ao altar principal, tem no seu Altar-Mor a
imagem de Nossa Senhora da Conceição, provavelmente original do Século XVII,
cujos contornos assentam de forma perfeita no estereótipo principal da criação
do próprio Portugal. De facto, em parceria com Nossa Senhora do Campo, de cuja
essência saiu para assumir o seu papel de guardiã da porta do castelo, Nossa
Senhora da Porta não é mais do que a mãe-primordial dos Portugueses, numa
recuperação simbólica de pressupostos de Fé que antecedem a própria ideia de
Portugal.
Situada num dos mais belos
recantos de Portugal, numa vila que sustenta o charme das suas vetustas
muralhas, a Igreja de Santa Maria da Porta e a própria localidade de Melgaço,
são pormenor incontornável em qualquer visita que se faça ao Norte de Portugal.
Ali, pelo que subsiste da sua gloriosa história, é possível sentir e entender
aquele que é o alicerce maior da Alma de Portugal.