sexta-feira

O Castelo de São Mamede em Guimarães




por João Aníbal Henriques

Quando a História se cruza com a lenda, recriando um cenário onírico onde fantasia e realidade compõem um espaço único que calcorreamos, criam-se as condições para que um determinado lugar assuma laivos de deslumbramento que perduram ao longo dos anos.

É o que acontece na Cidade de Guimarães, comummente aceite como “Berço de Portugal”, no topo da sua colina de Nossa Senhora da Oliveira onde se ergue o seu altaneiro castelo. A construção, que quase parece ter sido esculpida como se de um cenário de teatro se tratasse, impõe-se na paisagem da cidade e define de forma evidente o imaginário colectivo dos vimaranenses e representa a própria identidade de Portugal.




De acordo com a documentação histórica, o Castelo de Guimarães foi começado a construir pela Condessa Mumadona Dias, viúva do poderosíssimo Conde Hermenegildo Gonçalves que governou o Condado Portucalense no final do Século X. No ano de 968, para defesa de uma comunidade monástica que havia criado no sopé do monte de Guimarães, a condessa emite um documento de doação do castelo à comunidade religiosa com vista à sua protecção contra os gentios. Nesse documento, é mencionado expressamente que as obras de construção já estavam terminadas e que a designação oficial da fortaleza era São Mamede. Será, porventura, um dos mais antigos documentos de fundação existentes em Portugal e, com a clareza notarial que apresenta, é por certo o principal atestado que nos permite conhecer e perceber o processo que conduziu à formação da nossa identidade e, posteriormente, a conquista da independência nacional.

Depois da conturbação normal que resulta da morte da condessa e do processo de posse pelo qual lutaram os seus descendentes, o Castelo de Guimarães volta a intervir directamente no devir nacional quando é entregue, por ordem do Rei Afonso VI de Leão e Castela, ao Conde Dom Henrique. A doação real, resultante do casamento do nobre borgonhês com a filha segunda do monarca, D. Teresa, acompanha o processo de criação formal do Condado Portucalense e, segundo reza a lenda, é a principal responsável pelo facto de ali ter nascido Dom Afonso Henrique que, mais tarde, virá a ser o primeiro Rei de Portugal.



A ligação de Dom Afonso Henriques a Guimarães, eivada dos mistérios próprios das histórias que se criam e desenvolvem no imaginário popular, relaciona-se por sua vez com a célebre Batalha de São Mamede, na qual o futuro monarca derrota a sua mãe e assume oficialmente os destinos do país emergente. Ali, no ímpeto de uma das batalhas mais significantes da História de Portugal, o auto-proclamado rei desfere o golpe final contra a sua mãe. Em termos simbólicos, é este o momento decisivo na cisão definitiva entre a lealdade jurada ao rei estrangeiro e o assumir de um caminho novo, marcado pela protecção divina e até pela presença do Filho de Deus junto do novo rei, num episódio cujos contornos surgem enublados pela passagem do tempo, entrando numa zona de não-tempo e não-espaço onde desaparecem os indícios daquilo que é real e do que é imaginário.

São Mamede, o mártir Cristão que lendariamente nasce envolvido pela desgraça e que ao longo da vida se concentra numa relação de dependência profunda e directa da mercê de Deus, personifica a concretização do impossível e a o apelo à força de uma Fé que supera a própria existência do real. Tal como Dom Afonso Henriques fará em meados do Século XII, Mamede de Cesareia está marcado pelo destino. A ele compete zelar pelos fracos e pelos desprovidos de sorte, garantindo-lhes o estabelecimento de pontes directas com o céu. No cimo da colina do castelo, depois de ultrapassada a Capela de São Miguel, chega-se então ao portão daquele espaço especial, e cruzando-se a sua entrada, deparamo-nos com o cenário mais linear do que foi o próprio nascimento de Portugal.

O mártir São Mamede, depois de atacado no estômago pelo rei pagão, sobreviveu graças à intervenção de Deus Pai. Directamente do céu, foi a própria divindade quem lhe colocou um estômago novo, permitindo-lhes resistir ao ataque e sobreviver para continuar a promover a sua Fé. Mas, quando tudo parecia indicar um desfecho oposto, Deus dirige-se a Mamede e diz-lhe que os seus dias na Terra chegaram ao fim… e ele aceita, numa entrega consubstancial à vontade do seu Pai, e entrega prazeirosamente a Alma ao Criador, sabendo de antemão que o milagre que deu forma à sua curta vida era, ele mesmo, a pedra angular que reforçaria a Fé de tantos que haveriam ainda de nascer num futuro que ele não sonhava e nem sequer concebia.

Ao fundar Portugal, o Rei Afonso Henriques cumpre destino idêntico. Dá forma, corpo e vida ao novo Estado de Portugal, numa entrega absoluta à vontade de Deus e antecipadamente disposto a sacrificar a sua vitória em prol de um outro qualquer desígnio. A subida do monte em Guimarães, tendo como horizonte da Senhora da Oliveira cuja orientação assegurava o bom carácter do seu trajecto, fê-la de forma totalmente desligada da matéria, numa quase absurda ingenuidade de sentimentos que o afastavam do tempo e do espaço em que viveu. Por isso Ourique foi algures em Portugal, embora tenha sido palco privilegiado da visita do próprio filho de Deus! E, sem tempo e sem espaço, foi em todo o território de Portugal que isso aconteceu.




Como para poder nascer é necessário morrer, numa inversão completa da lógica de pensamento que constrange a cultura Ocidental, Afonso Henriques gera o novo reino num registo de imaterialidade que permite ao improvável país novo a sobrevivência num cenário em que nada o deixaria antever. Foi um milagre o nascimento de Portugal e milagre maior ainda a sua sobrevivência durante tantos séculos. Tudo foi possível, soba égide de São Mamede, porque em Guimarães, cadinho sagrado da Alma de Portugal, Afonso foi capaz de viver em pleno a consagração e de concretizar o irrealizável aos olhos dos homens por exclusiva vontade de Deus…

Depois de obras profundas realizadas no castelo pelo Rei Dom Dinis, o mesmo que foi casado com a alquímica Rainha Santa que transmutava a matéria aos olhos do povo e do seu Rei, o Castelo de São Mamede ganha a fora que hoje ainda tem. Passam-se depois vários séculos de paulatino abandono, mercê da estabilização territorial que torna inútil o altaneiro castelo, processo que culmina com a sua classificação como Monumento Nacional em 1908, que virá a desencadear uma intervenção profunda realizada em pleno Estado Novo pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Deste período ficou o aspecto cenográfico das suas muralhas, apimentadas com as ameias neo-medievais, que o retiraram do desinteressante e pouco edificante papel de fortaleza principal do Reino, para lhe conferir o título onírico de Berço de Portugal.

Em Guimarães ainda hoje se sente no ar o perfume fugidio desse sonho de antanho. As pedras das casas e das velhas capelas, erguidas à sombra do portentoso castelo e das imensas lendas que sempre o rodearam, vão refulgindo num brilho obscuro que acompanha os momentos bons e maus de Portugal.

É obrigatório visitar, explorar a fundo e conhece cada detalhe deste castelo excepcional. Até porque ali (ali mesmo naquele recanto sombrio do velho recinto amuralhado) nasceu Portugal!