por João Aníbal Henriques
O orago de Nossa Senhora dos
Remédios remete-nos para as memórias mais ancestrais da humanidade De facto, a
Senhora que cura e cuida dos seus filhos, reminiscência simbólica das práticas
de sociabilização que acompanham o nascimento do conceito de família, tem o seu
apogeu nos primórdios do período Neolítico, quando os primeiros assentamentos
humanos abandonam nomadismo e adoptam estilos de vida marcados pela
sedentarização.
A Senhora dos Remédios, que o
lendário Português associa directamente aos perigos e perseguições sofridas
pelos primeiros Cristãos durante o descalabro que acompanhou a queda do Império
Romano, é assim simultaneamente a histórica Mãe de Jesus e a figura épica da
Senhora da Conceição, eixo primordial da Fé e da espiritualidade antiga naquele
que é hoje o território de Portugal. A ligação estreita entre ambos os oragos,
num displicente apelo à figura que centra em si a capacidade de apoiar o ser
humano nesta sua aventura terrena, conjuga-se nas práticas Cristãs como
repositório dos valores absolutos da bondade inequívoca e da entrega total à
vontade de Deus, consubstanciado de forma completa no papel desempenhado por
Nossa Senhora enquanto cadinho alquímico da transformação da divindade pura em
carne e em sangue.
É, pois, o sofrimento geral que
acompanha a vida humana neste recanto inóspito do fim-do-mundo romano, marcado
pela angústia que resulta da dúvida sistemática em relação ao que o futuro nos
reserva e à incerteza em relação à vontade de Deus, quem determina a devoção
ancestral que liga a Senhora dos Remédios a Carcavelos, num pleito de harmonia
profunda entre as vicissitudes próprias da antiga comunidade rural que
subsistia neste local e os ventos mais recentes de um impulso regenerador e
progressista que os tempos recentes vieram trazer. Remedia Nossa Senhora aqueles
que são ais desafortunados…
A faceta saloia de Carcavelos,
dependente em permanência da terra e das instáveis vontades da natureza, recria
uma forma muito própria de viver a espiritualidade. Aqui, mais do que em
qualquer outro local da periferia de Lisboa, sente-se no ar a dúvida permanente
entre o valor da matéria e o bem geral da comunidade… Será isso, possivelmente,
o que explica a decoração singela da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, na
qual a nave única se enche da policromia própria dos painéis azulejares do
Século XVI, prescindindo da opulência vistosa dos dourados barrocos que algum
tempo depois hão-de transformar-se na principal marca dos templos e das igrejas
de Portugal.
Mas, se no Século XVI, foi a
génese saloia e rural da actual Freguesia de Carcavelos, quem determinou a
estrutura do templo, obviamente enquadrado naquilo que eram as práticas
arquitectónicas comuns na sua época, a partir daí foram muitos os problemas que
vieram a afectar a igreja, condicionando a sua formulação e até a própria
implantação no espaço, naquele que é o coração da localidade.
De facto, pouco tempo depois da
sua construção, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios foi bastante danificada
pelo terramoto de 1755. E se, noutros lugares, a recupeação foi possível e
decorreu de forma célere, em Carcavelos o processo foi moroso e difícil, em
linha com a pobreza que nessa altura caracteriza aquele espaço. Ao longo do
Século XVIII e, mais tarde, durante todo o Século XIX, a situação financeira da
Igreja e da Paróquia de Carcavelos foi-se agravando, ao ponto de, por ocasião
da implantação da república, a igreja ter sido encerrada por falta de recursos.
E daí por diante, mercê da laicização progressiva da sociedade e das
influências republicanas sentidas nesta zona Nascente do Concelho de Cascais, a
situação foi-se agravando ainda mais, ao ponto de a igreja ter sido mesmo transformada
numa escola depois de ter sido desmantelado e vendido todo o seu recheio.
Mas a devoção a Nossa Senhora dos
Remédios, a senhora que ajuda quem dela mais precisa, acabou por ser determinante
na história da própria localidade. Logo depois da implantação da república, é o
administrador do Concelho de Cascais quem toa a iniciativa de defender o
património da igreja, proibindo a retirada e a venda dos seus painéis de
azulejo. E é também ele quem, ao proteger os bens daquele importante templo,
recria as condições essenciais para que mais tarde se recupere a paróquia e o
culto seja devolvido a Carcavelos.
Em termos iconográficos, como
consequência da história associada à Ordem Hospitalar da Santíssima Trindade,
que foi a principal responsável pelo orago de Nossa Senhora dos Remédios, a
imagem devocional da igreja apresenta uma Nossa Senhora com o menino no braço
esquerdo e uma bolsa de dinheiro na mão direita. Cumpria-se, assim, a ajuda da
Virgem aos seus devotos, numa entrega de bens que suprem as necessidades mais
prementes daqueles que a Ela apelam. E a Senhora dos Remédios, remedei-a assim
os mais necessitados, num desapego perante a materialidade que é essencial no
percurso espiritual daqueles que seguem o seu exemplo.
Será certamente este valor
potencial que determina a amplitude devocional em Carcavelos. Dentro da igreja,
venerados pelos paroquianos, existe uma outra imagem de Nossa Senhora, esta
feita do Carmo, que complementa em termos simbólicos a força que emana no órgão
principal. Nossa Senhora do Carmo, possivelmente denotando a relação com o
Convento do Carmo existente desde o Século XVI em Cascais, apresenta-se com o
escapulário próprio da ordem e representa a total entrega à vontade de Deus.
A visita à Igreja de Nossa
Senhora dos Remédios, em Carcavelos, é pois o sinónimo desta entrega absoluta à
divindade. A singeleza da sua formulação estética, marcante do estilo chão que
sempre caracterizou a via em Carcavelos, impõe-lhe uma beleza sem par. Vale a
pena, desta maneira, passar os antigos portões de Carcavelos e visitar esta
igreja tão especial.