por João Aníbal Henriques
Causa estranheza, para quem
deambula desinteressadamente pelos arrabaldes de Belém, em Lisboa, o enorme
palácio inacabado da Ajuda. Em primeiro lugar pela sua dimensão inesperada num
ponto esquisito da cidade; Depois, porque a sua magnífica fachada neo-barroca
contrasta de forma impactante com as traseiras inacabadas e em cenário de
pré-ruína; e por fim, porque a alguns metros do monumental edifício, se ergue
uma também ela monumental torre do relógio, com o seu galo de ferro forjado,
que parece perdida no meio de um vasto e quase sempre vazio parque de
estacionamento…
Mas a explicação para este
estranho fenómeno monumental de Lisboa é simples e está directamente relacionada
com uma série de azares e infortúnios que marcaram a vida da capital e a de
todos os Portugueses.
O primeiro desses desastres foi
provavelmente o maior cataclismo de sempre na História de Portugal: o grande
terramoto de 1755. Na manhã do dia 1 de Novembro, quando a velha cidade
medieval de Lisboa se preparava para devotamente assistir à Missa do Dia de
Todos-os-Santos, a terra tremeu de forma tremenda, praticamente destruindo três
quartos da área total da capital. Como se tal não bastasse, o cataclismo foi seguido
de um maremoto inimaginável, que fez as água do Rio Tejo subir até ao actual
Marquês de Pombal, que foi seguido de uma devastação brutal imposta por
sucessivos incêndios.
Num cenário apocalíptico de
destruição e ruína, Lisboa viveu muitos dias de medo. Os habitantes temiam a possibilidade
de novas réplicas e, não só a instabilidade ao nível dos elementos, como a interpretação
do fenómeno como tradutor da cólera divina perante os seus habitantes, pareciam
combinar-se para gerar uma onda generalizada de refugiados que procuravam
afastar-se o mais possível da cidade.
O Rei Dom José I e a Família
Real, por um acaso que foi essencial na determinação daquilo que viria a ser o
rumo da própria História de Portugal, tinha passado essa noite em idílico
refúgio em Belém, local menos afectado pela onda sísmica, razão pela qual todos
escaparam incólumes ao desastre. Mas, se escaparam sem ferimentos físicos à
devastação trazida pela fúria da natureza, não conseguiram livrar-se da
angústia perante o acontecido e, sobretudo, do medo que era comum a todos os
súbditos que fugiam da cidade. Temente a Deus e cheio de medo de que tal
cenário de catástrofe pudesse vir a repetir-se, terá o Rei indicado ao seu
braço-direito, o Primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro
Marquês de Pombal, que jamais voltaria a dormir numa casa de alvenaria!
E assim foi. Cumprindo as ordens
reais, foi a Família real instalada num palácio construído precariamente em
madeira numa velha quinta comparada por Dom João V na zona da Ajuda, que
popularmente passou a ser conhecido como a “Real Barraca da Ajuda”, para onde
se transferiram grande parte dos bens de outros palácios reais e nomeadamente
aqueles que haviam escapado aos escombros do velho Paço da Ribeira.
A Real Barraca, plena de
sumptuosidade e ocupando uma área maior do que aquela que ocupa o actual
palácio, foi imaginada pelos melhores arquitectos de então, e decorada com o
luxo que estava associado à importância e à riqueza da Casa Real Portuguesa. Petrone,
Mazone e Veríssimo Jorge, foram apenas três dos personagens ilustres que
ajudaram Dom José a transformar a estrutura precária num dos mais ilustrados
palácios da Europa de então. À sua volta, por ordem do Marquês de Pombal, foi
construído o primeiro Jardim Botânico de Lisboa, enquadrado na soberba paisagem
fronteira ao Tejo e encabeçada pela construção também ela monumental de uma imensa
Capela Real em madeira, cujo perfil marcou em definitivo o cenário régio da
cidade.
Tendo ali vivido até à sua morte
em 1777 o Rei Dom José, a real Barraca da Ajuda depressa alcançou o prestígio
social de centro da Corte, dali se definindo toda a política que haveria de
recriar a moderna Lisboa que hoje temos.
A perenidade da construção e a
passagem do tempo, condicionaram então a Família Real a repensar o modelo
precário da estrutura onde habitavam e começaram a surgir os primeiros planos
para a construção de um imenso palácio barroco em pedra no mesmo local.
Subsiste até hoje, por ter sido a única estrutura efectivamente construída em
pedra nesse tempo, a velha torre sineira do galo, que durante essa época áurea,
estava completamente envolvida pelo abarracamento da velha patriarcal de
madeira e pelo vetusto palácio.
Depois da morte do Rei e mercê do
facto de a sua filha e sucessora viver correntemente no recém adaptado Palácio
de Queluz, onde encontrava acomodações e conforto substancialmente superior
àquele que exista na Ajuda, ficou a velha barraca numa situação de cada vez
mais precário abandono, tendo sido completamente destruída, mercê do infortúnio
de um incêndio que acidentalmente a destruiu por completo, no ano de 1794. Tendo
sobrado unicamente a velha torre do relógio, o Príncipe-Regente D. João ordenou
o início da construção de um novo palácio, seguindo os traços e os projectos
que desde há muito tempo se estavam a preparar para o local.
Com traço de Manuel Caetano de
Sousa, o novo palácio barroco da Ajuda começa a ser construído logo nesse ano
mas, mercê de vicissitudes diversas a que não é alheia a invasão francesa e a
fuga da Família Real para o Brasil, as obras são suspensas provisoriamente, só
recomeçando depois da crise, e depois de o projecto inicial ter sido modificado
e modernizado por Francisco Xavier Fabri e José da Costa e Silva, ao sabor das
mais modernas correntes de pensamento do início do Século XIX.
Não estando ainda terminadas as
obras quando o novo Rei Dom João VI regressa a Lisboa, opta a família real por
habitar o Palácio da Bemposta e o recém-renovado Palácio das Necessidades,
deixando as obras da Ajuda num lento marasmo que se vai prolongar ao longo de
muitos anos. Durante o curto reinado de D. Miguel, é na Ajuda que se assiste à
sua proclamação e às principais cerimónias de Estado, sendo também ali que virá
a ser aclamado o Rei Dom Pedro V, já em pleno período liberal.
Depois, quando o romantismo
trazido da Alemanha pelo Rei-Consorte Dom Fernando II de Saxe-Coburgo-Gotha se
concretiza no ambiente bucólico da Pena, em Sintra, o fausto só regressa ao Palácio
Real da Ajuda pela mão da Rainha Dona Maria Pia de Sabóia, esposa do Rei Dom
Luís, que se apaixonou pelo espaço e, para além de ter tentado concluir as
obras sempre inacabadas das alas Norte e Poente do edifício, se encarregou
pessoalmente do adaptar às necessidades do seu tempo e de o decorar de acordo
com o seu requintado gosto italiano. Foi ela quem, aliás, ali viveu de forma
ininterrupta depois da morte do Rei Dom Luís e durante todo o reinado do seu
filho, D. Carlos e, depois, até à Implantação da República em Outubro de 1910.
Agora, cerca de 200 anos depois
do início das obras, foi finalmente anunciada a conclusão da fachada Poente do
palácio, num projecto apresentado em finais de 2016 pelo Primeiro-Ministro e
com traço do Arquitecto João Carlos Santos.
Os esboços apresentados, cuja
execução orça cerca de 15 milhões de euros, assumem uma linha de cisão muito
controversa relativamente à traça original do edifício, implementando uma
estrutura moderna em vidro que fechará definitivamente a História da Ajuda.
Inserida na mentalidade
traumatizada da visão cultural do Portugal que hoje temos, o projecto que agora
se apresenta deforma o Palácio Real da Ajuda e deturpa a visão que os
Portugueses têm dele. Mas, pior ainda, dá corpo a uma abordagem de tal forma
impressiva que, na dinâmica da arquitectura de cenário que a Ajuda sempre teve,
configurará uma abordagem perfeitamente desenquadrada a ser concretizada pelas
próximas gerações, num manancial de imposição egoísta de novos rumos e de novas
abordagens que compromete toda a história deste local.
Assumindo a História de Portugal
e a História de Lisboa, o Palácio Real da Ajuda deveria ser concluído seguindo
o projecto inicial. Só assim, respeitando os ecos da História e a memória
colectiva dos Portugueses, se poderia aspirar em manter a sua importante função
de catalisadora da Identidade Portuguesa.