por João Aníbal Henriques
A representação simbólica de
Cristo, numa linha de recriação da sacralidade que perpetua no tempo os laivos
da própria eternidade, surge apoteoticamente associada ao acto da salvação.
Jesus, simultaneamente Deus e Homem, Cristifica-se para salvar a humanidade,
entregando-se totalmente nas mãos do Pai e abandonando a Sua vontade para que
se garanta o espaço suficiente para que se expresse a vontade do Criador.
O Salvador do Mundo é, assim, a
pedra angular na sobrevivência daqueles que sofrem e simultaneamente eixo
central na Fé daqueles que paradoxalmente o buscam para nele encontrarem a
plenitude de uma existência a que aspiram chegar. Para Ele convergem os olhares
desesperados dos que anseiam por um Mundo melhor e é também nele que assentam a
Fé os que o tomam por exemplo, procurando na replicação da sua imagem o cadinho
de santidade que lhes assegura a eternidade.
Na Cidade de Angra do Heroísmo,
na Ilha Terceira, o fulcro da vivência religiosa é precisamente consagrado a
São Salvador. A Sé Catedral, com dedicação ao Rei do Mundo, espelha de
sobremaneira este intrincado processo de Fé, conjugando a serenidade da
contemplação passiva como repositório de graças com o despojamento total e
absoluto daqueles que nele procuram as condicionantes que lhes permitem
compreender e perceber os desafios impostos pelo devir quotidiano.
Construída provavelmente após a
colonização da Ilha Terceira no Século XV, a igreja primitiva é hoje quase
completamente desconhecida dos historiadores. Logo em 1496, após a nomeação do
seu primeiro vigário, a comunidade Cristã de Angra do Heroísmo percebeu que as
dimensões do templo eram sobejamente inferiores às suas necessidades e que a
prosperidade da ilha, associada a uma paisagem extraordinária, depressa faria
crescer o número de fiéis, exigindo a construção de uma catedral de maiores
dimensões.
Depois de várias iniciativas que
tinham como objectivo o de sensibilizar a Coroa para esta necessidade essencial
do povo Açoriano, foi o Cardeal Dom Henrique, já em 1568, quem mandou construir
a nova igreja. E, assumindo para si a responsabilidade pela evangelização dos
povos que ali habitavam, decide pagar ele, através de um imposto que a Coroa
geralmente cobrava sobre os pastéis produzidos na ilha, os cerca de três mil
Cruzados anuais que as obras custavam.
O primitivo Altar dedicado ao
Salvador do Mundo foi assim substituído pela actual catedral, cuja construção
se iniciou em 1570, quando se realizou a cerimónia solene de colocação da
primeira pedra. As suas linhas maneiristas, que muitos advogam ser uma mera
adaptação regional da arquitectura chã que existia na maioria dos pequenos
lugares dos domínios continentais, são da autoria do arquitecto Luís Gonçalves,
embora sucessivas adaptações, resultantes de intervenções variadas que o novo
edifício conheceu, tenham alterado bastante o projecto original.
A sua surpreendente disposição no
espaço, contrariando as regras normais neste tipo de construções e subvertendo
o princípio de orientar para Nascente o seu Altar principal, fica a dever-se às
imposições do doador do espaço que pretendeu reservar para si e para os seus o
direito de ocupar o principal espaço em frente à catedral.
De dimensões imensas para a
escala da Ilha Terceira, a Catedral de Angra é certamente o maior espaço de
culto do Arquipélago dos Açores, para ele convergindo as dinâmicas apostólicas
que determinam a sua importância na própria História de Portugal. De facto, em
vários momentos da história, foi em Angra do Heroísmo que se definiram os
critérios políticos que haviam de resultar em novas formas de governação de Portugal.
As Guerras Liberais, por exemplo,
tiveram largo impacto na praxis social da Ilha Terceira e ajudaram a definir de
forma sistemática aquilo que viria a ser a concretização dos novos poderes em
Portugal. Nesse período, do qual o Obelisco da Memória traduz o essencial,
travaram-se na catedral várias questiúnculas que depauperaram o seu tesouro e
que ajudam a perceber o impacto que a guerra teve no próprio desenvolvimento de
Portugal.
Tendo sido bastante afectada pelo
grande terramoto que atingiu os Açores em 1980, e também pelo incêndio que a
afectou em 1984, a Catedral de São Salvador viu quase completamente destruídos
os seus elementos decorativos mais importantes. O processo e reconstrução, no
entanto, acabou por redefinir de forma consolidada a sua colocação no âmbito do
novo urbanismo terceirense, recriando um processo que teve como principal
consequência uma enorme vinculação do povo local à Fé no seu santo padroeiro.
Sem a decoração barroca que
noutros tempos levou muito longe a fama da catedral, São Salvador de Angra do
Heroísmo mantêm ainda intocadas várias das muitas características que a tornam
num local especial. O seu baptistério, por exemplo, ostenta ainda as pinturas
maneiristas da “Circuncisão de Cristo” e da “Adoração dos Magos” que abrem a
cartela que marca aquele importante espaço terceirense. Foi ali que a maior
parte dos paroquianos de Angra do Heroísmo foram baptizados e, com eles, dois
vultos muito grandes da nossa História. O primeiro foi o Beato João Baptista
achado, mártir açoriano que pereceu no Japão num esforço hercúleo de
evangelização; e o segundo a figura quase mítica de Gongunhana, o líder
africano capturado por Mouzinho de Albuquerque e que, já no Século XIX, aqui
recebeu a água que o iniciou na vida Católica.
Cognominado como o “Leão de Gaza”,
Gongunhana foi o último imperador do Império de Gaza, situado no actual território
de Moçambique. Depois da sua captura pelo Estado Português, foi deportado para
o Açores onde chegou em 1896. A sua chegada ao porto da cidade, perante o
espanto e a curiosidade imensa da população local, foi um dos mais
significantes episódios da história recente de Angra do Heroísmo. Cabisbaixo e
humilhado, o prisioneiro e os seus companheiros foram levados para o Monte
Brasil onde ficariam instalados durante o período do exílio. Ao contrário do
que muitos esperavam, a sua integração na comunidade local e na vida social da
ilha decorreu de forma muito linear e simples. A humildade da sua postura e a
forma como se interessou pelos usos e costumes Portugueses, acabaram por fazer com
que o sentimento inicial de repúdio sentido pelos locais, se transformasse num
misto quase carinhoso de adopção dos novos visitantes. Poucos anos depois da
sua chegada, Gongunhana aprende a ler e a escrever e, em 1899, baptizou-se
precisamente no baptistério da Catedral de São Salvador. Foi ali que acabou por
falecer, já no ano de 1906, tendo sido sepultado no cemitério local.
Para ele, como também para todos
aqueles que procuraram na Ilha Terceira caminhos para novas formas de vida, São
Salvador representou sempre um papel essencial. No seu significado de profundo
despojamento da materialidade, essencial na definição dos novos rumos que todos
haviam de trilhar em direcção ao Céu, São Salvador estabelece a ponte com os
cultos ao Espírito-Santo que corporizam ainda hoje a face mais visível da Fé
local, desenvolvendo laços de enorme impacto no dia-a-dia das populações. O
Senhor que salva a todos e que a todos acolhe nos seus braços é, afinal,
exactamente o mesmo que com o Espírito-Santo coroa a criança e lhe oferece,
porque ela não a entende, toda a dignificação da vida social desprovida de
interesse e/ou de importância quando o destino final é o paraíso e a presença
perante Deus.
A Sé Catedral de São Salvador de
Angra do Heroísmo, classificada como Monumento Regional desde 11 de Junho de
1980, é hoje possivelmente o mais significativo monumento da Ilha Terceira. Pelas
suas características arquitectónicas, pela história que patenteia e, sobretudo,
pelo significado profundo da sua presença na definição da Identidade Açoriana,
é peça de visita essencial para todos os Portugueses que tenham a sorte de
visitar esta ilha tão especial.