por João Aníbal Henriques
Reza a lenda que, algures durante
o reinado de Dom João III, uma pastorinha muda e esfomeada nascida na
localidade das Almoínhas Velhas (Malveira-da-Serra, Cascais), terá subido à
Serra de Sintra com o seu rebanho onde encontrou Nossa Senhora. A figura com a
qual falou, respondendo ao seu anseio de alimentos para si e para a sua família,
disse-lhe para regressar a casa e abrir uma determinada arca onde encontraria o
pão de que necessitava. Correndo de regresso para casa, a pastorinha
recuperou a voz e indicou à sua mãe onde encontrar o tão almejado alimento. A
velha imagem tosca de Nossa Senhora da Penha, colocada na arca, terá sido então
exposta para veneração na velha Capela de São Saturnino, situada a poucos
metros do local da aparição. Mas, teimosa, saia subrepticiamente do altar onde
a colocavam e reaparecia no cimo dos rochedos situados atrás do templo. Tantas
vezes se repetiu a travessura que se construiu em sua honra a capela actual no
topo do monte da peninha.
Não se sabendo exactamente quando
tudo isto aconteceu, e havendo várias notícias da existência de edifícios que precederam
aquele que actualmente ali se encontra, sabe-se, no entanto, que a Capela de
Nossa Senhora da Peninha terá sido construída por um tal Pedro da Conceição,
que tinha na altura somente 28 anos, e que se encontra sepultado junto ao
monumento.
Nas inscrições lapidares de
Sintra, vem descrita a indicação que se encontra na sepultura do fundador, dizendo
que ali jaz o Ermitão Pedro da Conceição, falecido em 18 de Setembro de 1726, e
que pede a todos os que por ali passem um Padre Nosso e uma Avé Maria pela Alma
dos seus benfeitores. Numa das paredes do templo, existe uma segunda lápide
confirmando a identidade do construtor original e afirmando que a obra foi
efectuada em 1690. Sendo muitos e rocambolescos os episódios pelos quais passou
o singelo templo Sintriano, o certo é que foi alvo de muitas obras de
construção e reconstrução que lhe conferiram o aspecto que hoje conhecemos.
Sabe-se ainda que no final do
Século XIX, em 1892, a Peninha é comprada pelo Conde da Almedina que em 1918 a
revende a António Augusto Carvalho Monteiro. O Monteiro dos Milhões, como ficou
conhecido o construtor da Quinta da Regaleira, situada junto à Vila de Sintra,
era na altura um dos mais conhecidos e ricos empresários lisboetas, com
investimentos variados na banca de então que, do alto da sua prosperidade,
adquire uma visão ecléctica do Mundo e das suas gentes.
Profundamente místico e grande
conhecedor de tudo aquilo que dizia respeito ao destino de Portugal, Carvalho
Monteiro pauta a sua vida por um conjunto de valores e de princípios que,
apesar da distância que o separa do antigo Ermitão Pedro da Conceição, lhe são
muito próximos e semelhantes.
Adossado às penhas que sustentam a capela, o proprietário projecta a construção de um palácio onde pretendia passar temporadas em meditação e em recolhimento. Projectado por Júlio da Fonseca em 1920, o palácio fica por acabar mercê da morte de Carvalho Monteiro, tendo posteriormente sido adquirido do advogado José Rangel de Sampaio que concluiu as obras e legou o palácio em testamento à Universidade de Coimbra.
Em 1991, pela importância de
90.000 contos, o imóvel é adquirido pelo Estado Português, através do Serviços
de Parques e Conservação da Natureza, que efectuou algumas obras de restauro e
conservação.
A Poente da Capela de Nossa
Senhora da Peninha, subsiste em forma de ruína avançada, o que resta da velhinha
Ermida de São Saturnino, originária do Século XII, e cuja importância em termos
patrimoniais contrasta de forma evidente com a incúria em que tem sido deixada.
O conjunto patrimonial da
Peninha, composto pela Capela, pelo palácio de Carvalho Monteiro e pela velha
Ermida de São Saturnino, está inserido numa das mais impactantes paisagens da
Região de Lisboa, abraçando em termos visuais desde a Ponte Sobre o Tejo, em
Lisboa, até ao Cabo da Roca.
A singeleza da lenda, apelando aos sentidos de pureza primordial e fazendo a apologia da pobreza extrema e abnegada, enquadra-se no conjunto ritualístico próprio da Serra de Sintra, numa lógica cruzada de paganismo cristianizado e de apelo constante ao Quinto Império Português. A devoção pela Senhora que concebe, a Senhora da Conceição que tão linearmente devolve à pastorinha das Almoínhas Velhas (ou Almas velhas), a sua voz e lhe mata a fome, é concretizada pelo Ermitão, ou seja, pelo que assume a pobreza como fio condutor da sua vida, Pedro da Conceição, em ligação permanente ao culto ritual antigo.
Na Ermida Medieval, onde o culto
é de São Saturnino, a linha orientadora é a mesma, apelando ao eterno retorno e
ao culto obscurecido dos Mundos Internos, numa lógica que corre em linha com o
útero materno, a Deusa-Mãe primordial, por aqui venerada desde tempos imemoriais.
Enfim… Nossa Senhora da
Conceição.