por João Aníbal Henriques
São muito raras as cidades, sejam
elas situadas no actual território Português ou fora dele, que podem
orgulhar-se de ostentar um topónimo tão significativo como Beja. O actual nome
da cidade, recuperando o topónimo ancestral (provavelmente pré-histórico) do
local, deriva da palavra baja, ou seja, lama ou lodo, trazendo à memória a
fertilidade excepcional dos terrenos agrícolas que envolvem a cidade. Mas,
durante o processo de romanização, iniciado provavelmente no primeiro século
antes de Cristo, adquiriu a designação latina de Pax Julia. O pax reverte para
o processo de pacificação das populações célticas que foram invadidas pelos romanos,
e o epíteto Julia tem a ver com o nome do Imperador que deu forma a esse
processo de paz: Júlio César.
Beja é, por isso, cidade
simultaneamente de paz e de fertilidade, ou seja, tem tudo aquilo de que o Ser
Humano necessita para viver bem e usufruir da sua vida! A planície alentejana,
dourada pelo restolho quente que dá forma e corpo ao ciclo agrícola, perpetua
no tempo os valores antigos de gerações e gerações de Portugueses que se vão
substituindo umas às outras neste espaço imenso.
E a História de Beja é longa e
profícua. Inicia-se provavelmente durante a pré-História, como o indicam os
muitos vestígios arqueológicos existentes nas redondezas, e afirma-se de forma
peremptória durante o calcolítico quando ali foi construído um povoado
fortificado que ocupava o espaço onde hoje se situa o castelo.
Quanto a este, altaneiro a partir
das suas muralhas antigas, é produto da evolução dos tempos e das necessidades
pelas quais foram passando os muitos pacenses que foram habitando o lugar. Se
as primeiras pedras foram colocadas ainda antes da História, tendo-se perdido o
seu rasto nos complicados repositórios da memória popular, certo é que os laivos
da fortificação mais resistente serão de origem romana. André de Resende, o
historiador quinhentista de Évora, assegura, embora sem fontes fidedignas que o
atestem, que o local onde hoje se situa o castelo de Beja foi outrora ocupado
por um oppidum romano, ou seja, uma fortificação de carácter simples e planta
circular, cuja principal função seria a de proteger aqueles que governavam a
cidade.
O próprio Júlio César, cumulado
de glória por ter conseguido conquistar os anteriores habitantes do local,
subjugando-os pela força do seu exército mas também pelo carácter imperioso da
cultura que o Império Romano representava, terá estado ali para formalizar a
paz que conseguira assegurar. O período romano, foi assim uma época de grande
prosperidade para a cidade, que foi simultaneamente sede de convento – o Conventus
Pacencis – e sede de uma das chancelarias da Lusitânia. Por ali passava uma das
principais vias romanas, que permitia a ligação directa à capital do Império, corporizando
um impulso urbanístico cujos vestígios são ainda hoje visíveis um pouco por
toda a cidade.
O declínio do Império Romano e a
sua progressiva desagregação, sendo sinónimo de uma diminuição paulatina do
poder detido pelos invasores, representou também ele o início de um período de
maior instabilidade no actual território alentejano e, por extensão, na própria
cidade de Pax Julia. Os ataques dos bárbaros, sistemáticos e sucessivos ao
longo de vários séculos, traduziram-se em várias conquistas e reconquistas que,
como facilmente se percebe, significaram também saques e destruição,
delapidando as muitas riquezas que existiam na cidade. Será porventura dessa
época o período de maior destruição das muralhas do castelo. Sem tempo nem
estabilidade para serem reconstruídas, o processo natural de erosão das mesmas
e a incapacidade de se proceder a obras de reconstrução, gerou um processo de ruína
acentuado, do qual não escaparam as necessidades práticas e quotidianas de
pedras para utilização noutros equipamentos e em casas que foram sendo
edificadas. É ainda hoje muito fácil encontrar nas ruas de Beja, casas e muros
onde são notórias as grandes pedras retiradas da anterior fortificação da
cidade e que, século após século, foram dando forma à urbe que hoje ali
encontramos.
Já na idade média, durante o
domínio árabe, foi Beja novamente retransformada numa das mais importantes
cidades do Alentejo. Os ocupantes muçulmanos, ali chegados no ano de 711, propuseram-se
recuperar o traçado urbano antigo e é dessa época a transição do topónimo
romano – Pax Julia – para a ancestral Baja. No entanto, quer pelas guerras internas,
quer possivelmente pelas alteração dos eixos estratégicos dentro do território,
não voltou Beja a recuperar a grandiosidade de outros tempos.
As notícias mais recentes na
História da Cidade e do seu castelo são assim do século XII, quando Fernão Gonçalves,
chefiando um grupo de populares oriundos de Santarém, ataca a cidade de
surpresa alcançando uma vitória retumbante. Embora tivesse sido sol de pouca
dura, porque logo depois os inimigos muçulmanos conseguiram voltar a recuperar
a cidade, o certo é que até este primeiro esforço de reconquista mostra bem o
estado lastimoso em que Beja se encontrava. Um grupo mal armado e mal
preparado, naturalmente motivado pela possibilidade do saque a que a vitória do
seu ataque daria direito, avança de forma amadora e despreparada sobre as
velhas muralhas e facilmente as consegue conquistar.
O regresso ao controle cristão não
está devidamente documentado, mas um estudo comparativo com o que aconteceu nas
redondezas, permite supor que Beja terá regressado à Coroa Portuguesa algures
entre 1232 e 1234, dado terem sido estas as datas em que tal processo aconteceu
com as vizinhas cidades de Moura, Serpa e Aljustrel. Mas o seu velho castelo,
destruído por sucessivos séculos de ataques e de abandono, só virá a conhecer
obras de recuperação com o Rei Dom Afonso III que em 1234 atribuiu o foral à
cidade.
O Rei Dom Dinis, depois de
confirmar o foral inicial, dedicou-se também à reconstrução do castelo, sendo
da sua responsabilidade a generalidade dos amuralhamentos que ali hoje vemos.
Foi também ele quem, por necessidades práticas associadas à consolidação da
fronteira Nacional, mandou edificar a torre de menagem que é hoje um símbolo de
Beja. Com cerca de 40 metros de altura, o que faz dela a mais alta de Portugal,
foi concebida de forma similar àquela que existe no Castelo de Estremoz, tendo
sido concluída provavelmente durante o reinado de D. João I, o fundador da
Dinastia de Avis, à qual Beja se manteve firmemente fiel durante o conturbado
processo político de 1383-1385.
Depois deste período, novamente
no Século XVI se realizam obras no castelo, desta vez para o adaptar às
modernas exigências técnicas da guerra, que já não se compadecia com a
formulação eminentemente medieval da velha fortificação. Apesar deste esforço
modernizativo, Beja foi completamente destruída pelas tropas napoleónicas
durante as invasões francesas, tendo depois disso mantido o seu carácter
humilde de cidade de província, estatuto que manteve até ao final da primeira
metade do Século XX.
A partir daí, fruto de uma grande
aposta do Estado, Beja conheceu um novo período de crescimento. Viu construídas
várias escolas e um grande hospital, tendo recuperado alguma das suas antiga
pujança. Para surpresa de muitos, ali se construiu um aeroporto internacional,
nos idos de 2011, que apesar de não apresentar movimento (!?) é hoje o
ex-libris das modernas obras públicas na cidade!
Mantendo nas suas armas municipais
a figura do touro, recuperado da velha lenda que nos conta a forma como Beja
conseguiu matar uma cobra venenosa que aterrorizava os habitantes da cidade, a
urbe é hoje um símbolo muito firme da força e da perseverança que sempre
caracterizou as suas gentes, sendo capaz de se afirmar como um espaço de
excepcional importância para compreender Portugal e para perceber as origens da
identidade Portuguesa.
A paz que a cidade ostenta,
cobrindo de glória os muitos motivos de interesse para uma visita e a
inesgotável fonte de História e de história que a cada canto e recanto
representam, são marca indelével de um sentido de Portugalidade que é urgente
compreender.