por João
Aníbal Henriques
A devoção de Portugal a Nossa Senhora é ancestral e precede
até o processo de formação da Nacionalidade. O culto sagrado à Virgem,
personificada de diversas formas consoante a designação ritualística a que está
inerente, é o fio condutor que unifica pensamentos, gerando um consenso
alargado que transforma a Mãe de Deus na verdadeira força motriz que dá forma a
Portugal.
Nossa Senhora, mãe de Jesus enquanto Deus vivo na Terra,
consolida assim os laivos de sacralidade que acompanham o próprio acto da
criação. A diferenciação do Homem das criaturas suas congéneres no mundo
animal, faz-se pelo assumir desta capacidade simbólica de interpretar o
universo. E Nossa Senhora, hoje padroeira e verdadeira Rainha de Portugal, já
era pedra angular da fé daqueles que por aqui vivem, desde tempos anteriores ao
próprio nascimento de Jesus Cristo. Num laivo de mistério profundo, apelando
aos sentidos que impõem a disciplina à carne, foi a Virgem Ancestral, mãe
verdadeira da humanidade, quem determinou os vínculos perenes que mais tarde se
transformam na persistente entrega à causa maior da independência do nosso
Pais.
Em Coruche, pequena e airosa vila situada nas margens do Rio
Sorraia, no Ribatejo, a vinculação a Nossa Senhora surge marcada precisamente
pelo processo de formação da Identidade Nacional. De facto, sendo
estrategicamente crucial para o controle dos territórios envolventes, bem como
essencial por se situar em pleno coração da ubérrima lezíria sorraiana, Coruche
conheceu um processo histórico intrincado, marcado por sucessivas lutas de
conquistas e reconquistas por parte dos diversos povos que a quiseram
controlar.
Em 1166, quando Dom Afonso Henriques a conquista aos Mouros, a
pequena vila era defendida por um castelo de composição rudimentar, cuja
construção era essencialmente suportada por travejamentos de madeira e tijolo
simples. Foi, aliás, o carácter muito precário desta fortificação, que servia basicamente
de complemento na linha de defesa marcada pelas fortificações de Santarém e de
Montemor-o-Novo, que determinou a sua reconquista pelos maometanos, ocorrida em
1180, o que obrigou o primeiro Rei de Portugal a um esforço redobrado para a
colocar definitivamente sob domínio Nacional.
Ainda o Século XII, antes de estar encerrado o processo de
Nacionalização de Coruche, a Coroa entrega a vila à Milícia da Ordem de São
Bento, em Évora, mais tarde de Avis. Neste processo, cujo fulcro é colocado no
cimo da colina onde se erguiam as paredes do velho castelo, assume sempre
especial papel o culto Mariano a Nossa Senhora, concretizado a partir da velha
ermida que por ali existia. A consolidação das fronteiras e a definitiva
pacificação do território Nacional, determina a perda da importância da
fortificação, recentrado todo o perímetro das paredes fortificadas para a
componente sagrada do espaço de culto.
Embora se conheça muito pouco daquilo que foi a História
antiga de Coruche, sabe-se que a sua importância estratégica foi atravessando
as eras, explicando assim a manutenção da sua ocupação humana desde os
primórdios da Pré-História. Depois de os Romanos terem estado lá por motivos
idênticos, o longo período sob domínio muçulmano terá certamente culminado na
criação de um conjunto de espaços de culto, sendo bastante provável que o alto
da colina do castelo tenha sido ponto essencial na definição dessa dinâmica
religiosa.
Coruche está, aliás, profundamente relacionada com estes
processos de mudança e transmutação. A imagem de Nossa Senhora do Castelo,
provavelmente de origem oitocentista, apresenta a Virgem Mãe com o seu filho em
pé, ao seu lado, ao invés de a apresentar como é normal no resto do País, com o
menino ao colo. Diziam os devotos populares de outros tempos, que tal se devia
ao carácter muito milagreiros da Santa Mãe, explicando assim a sua importância
da definição da própria identidade dos Coruchenses. Nas Memórias Paroquiais do
Século XVIII, quando o pároco local apresentava às autoridades o
ponto-de-situação em que ficou Coruche depois do grande terramoto de 1755, sublinha
esse facto, explicando que todos os devotos que procuraram na imagem de Nossa
Senhora do Castelo e nas paredes da sua ermida uma protecção contra o
cataclismo, viram as suas casas salvas da ruína em que ficaram as restantes…
É por isso o milagre, consubstanciado na intervenção de Nossa
Senhora do Castelo em defesa dos seus devotos seguidores, o factor principal
que permite perceber a importância deste espaço no contexto da devoção mariana
Nacional, sendo certo que as especificidades territoriais desta Senhora, muito
mais do que à comum definição lendária de aparições sucessivas, se ficam a
dever a uma prática reiterada desde a ancestralidade, mostrando uma linha de
culto comum que se perde nos laivos antigos de outros tempos.
O culto actual, organizado a partir da Carta-Ordem emitida em
1516 pelo então Mestre da Ordem de Santiago e Avis, D. Jorge de Lencastre, que
definia a obrigatoriedade de se organizar uma procissão anual de acção de
graças a Nossa Senhora, mistura-se ele próprio com a história extraordinária da
enigmática Rainha Santa Isabel, a santa alquimista que teve a capacidade de
transmutar a matéria transformando pão em rosas, já que a referida procissão
anual decorreu durante muito tempo no dia 4 de Julho, precisamente o dia em que
se celebra a Rainha Santa e o seu falecimento em Estremoz. Só mais tarde,
quando o dia 15 de Agosto passa a estar consagrado à Assunção de Nossa Senhora,
se altera a data da procissão, que passa a realizar-se nesse dia e
associada a uma feira anual que animava (anima ainda) a Vila de Coruche.
Ambas as datas, como é evidente, são resquícios profundos de
uma religiosidade marcada pela devoção a Nossa Senhora, consubstanciada num e
noutro caso em pressupostos que estão muito para além do dogmatismo que é usual
noutros lados.
Nossa Senhora do Castelo, a Virgem-Mãe que ainda hoje
acompanha em permanência muitos milhares de Coruchenses, é muito mais do que a
Mãe de Jesus ou do que a mera Assunção de Nossa Senhora. É marca viva de uma
ancestralidade perdida dos biombos dos tempos, marca indelével que suporta a
capacidade que Coruche tem de fazer parte da vida de todos os seus filhos e dos
filhos deles.
Vale a pena subir ao castelo de Coruche e visitar a ermida da
Senhora do Castelo. Porque ali se sente Portugal.