por João Aníbal Henriques
Sendo certa que é ancestral a
origem do culto devocional a Santa Iria, também conhecida como Santa Irene, na
localidade de Murches, em Cascais, não se conhecem com exactidão os seus
primeiros passos. Sabe-se, no entanto, que o culto se estende ao período
pré-Cristão, profundamente marcado pelo devir agrícola e pastoril das
comunidades antigas que viveram no actual território Cascalense, e paulatinamente
adaptado às circunstâncias e à passagem do tempo.
A actual Capela de Murches, com o
seu estilo chão e inserida na tipologia própria das construções de génese
rural, será provavelmente do Século XVI ou XVII, tendo sofrido alterações
menores a partir de meados do século seguinte. Mas, apesar disso, e tal como
acontece com todos os pontos axiais da religiosidade municipal de Cascais, terá
provavelmente reaproveitado o local sagrado onde foi construída, ocupando o
espaço onde teria existido um templo anterior. Ainda é possível ver, no remate
da fachada Norte do edifício actual, os vestígios desses reaproveitamentos e, embora
sem a monumentalidade que a ruralidade local impede, serão resultado do
isolamento em que Murches, desde tempos remotos, sempre sentiu em relação à
sede e ao litoral do Concelho.
É, no entanto, a ruralidade agro-pastoril
das terras de Murches, que marca de forma indelével a evolução social nesta
localidade e a devoção religiosa das suas gentes a Santa Iria. A dependência
dos ciclos da natureza, complementada com a pobreza dos solos e uma existência
de base pastoril na qual a transumância assume especial importância,
determinaram a ligação à Santa de Tomar, que protege o gado, garante os
mananciais de água e defende aqueles que dependem dela.
De acordo com a lenda, Santa Iria
terá nascido em Tomar, algures em tempo indeterminado, filha de um casal nobre da
antiga Nabância. Com um rosto maravilhoso e uma beleza verdadeiramente
incandescente, Iria desde cedo foi assediada por toda a espécie de homens da
região, a todos tendo resistido estoicamente com a mesma perseverança.
Questionada por seus pais acerca de quem iria escolher, a jovem responde que é
sua intenção entregar-se totalmente a Deus e fazer votos num mosteiro ali
existente, virando definitivamente as costas ao Mundo e às suas gentes. Mesmo
duvidando das suas palavras, os pais da menina fizeram-na entrar no mosteiro de
monjas beneditinas existe em Sélium, onde se cumpriu a sua suprema vontade.
Mas o Mundo, que Iria quis
esquecer durante os dias e noites de mortificação passadas dentro das paredes
frias do mosteiro, nunca esqueceu a beleza extraordinária da rapariga e, apesar
dos seus votos, foram muitos os que continuaram a tentar conquistá-la, mesmo se
para isso tivessem de assaltar o espaço e deturpar o odor de santidade que se
sentia lá dentro.
O mais assíduo dos seus
apaixonados terá sido um tal Britaldo, galante senhor da região de Tomar, que
tudo terá feito para seduzir a jovem monja. Ela, no entanto, nunca cedeu à
tentação e, reforçando a sua Fé, foi sempre afastando este e outros admiradores
que permanentemente cercavam o mosteiro.
Farto de tanto assédio, e certo
de que a paz interna só seria reposta com a saída da rapariga, o Monge Remígio,
Director Espiritual de Iria, deu-lhe a beber um medicamento preparado com ervas
que tinha como objectivo fazer-lhe inchar a barriga e, dessa maneira, criar o
pretexto para a sua expulsão do mosteiro. E assim aconteceu. Iria adoeceu
gravemente e, apesar da sua inocência, foi deitada porta fora e sujeita às
inclemências do tempo e da natureza e, mais importante ainda, às investidas
maldosas de todos aqueles que desejavam desposá-la a ela.
O nobre Britaldo, quando soube da
expulsão de Iria e do seu estado de gravidez, não acreditou na sua inocência e,
despeitado por ter sido preterido perante outro qualquer pretendente, mandou assassina-la
e atirar o seu corpo às águas do Rio Nabão.
Muitos séculos depois, durante o
reinado de Dom Dinis, terá sido a Rainha Santa Isabel, a alquimista, quem
encontrou os restos mortais da pobre mártir nabantina. O corpo da menina, tendo
sido transportado pela corrente até ao Rio Zêzere, e dali até ao grosso causal
do Rio Tejo, foi encontrado pela Rainha Santa durante uma das suas estadias no
Ribatejo. E, para sua surpresa e gáudio
de todos, o corpo de Santa Iria estava totalmente incorrupto, preservado pelas
areias do rio e pela vontade de Deus. O local onde o corpo foi encontrado
passou a chamar-se Santa Iria e a grande cidade que existia nas redondezas
tomou o nome de Santarém (corruptela de Santa Iria – ou Santa Irene).
Profundamente ligada aos cultos
pagãos da água e da fertilidade a ela associada, Santa Iria transforma-se na
figura angular sobre a qual se procede à cristianização de grande parte das
mais importantes zonas do actual território Português. Nabanus, a divindade
pagã que dá nome à Nabância onde a santa nasceu, relaciona-se precisamente com
o poder regenerador das águas e com a sua ligação espiritual à purificação da
humanidade, factor que rapidamente se estende, por intervenção directa da
Rainha Alquimista de Portugal, a outras zonas do País. Em Fátima, por exemplo,
o local onde Nossa Senhora apareceu em 1917 chama-se Cova da Iria e, em
Cascais, é nas margens da Ribeira da Marmeleira, principal veio de água que
desce da Serra da Lua – Cynthia - para saciar Cascais, que a dita capela com
dedicatória à santa acaba por ser erguida.
Santa Iria de Murches, a
divindade antiquíssima cuja intercessão garante água e fertilidade aos
Cascalenses, é assim motivação maior para uma visita a um dos recantos mais
encantados do Concelho de Cascais, num preito de homenagem a uma Identidade
cujas origens se perdem nas brumas do tempo.