por João Aníbal Henriques
A gestão dos critérios urbanísticos numa determinada localidade,
mais do que o resultado de uma prática projectada de antemão, é usualmente a consequência
mais visível do devir político e comunitário dos seus habitantes.
Quando a comunidade é activa e pragmática no estabelecimento das
prioridades que hão-de definir o seu espaço, temos como resultado um menor peso
do poder político central e, como consequência, uma maior liberdade de critérios
de construção e decoração. Quando a isso juntamos um afastamento geográfico
relativamente ao poder decisor, aumenta ainda mais a autonomia comunitária e
alarga-se o espectro de soluções que hão-de espelhar-se no cenário urbano que
se cria em seu torno.
Um dos exemplos mais paradigmáticos desta situação, é o da Vila da
Parede, no Concelho de Cascais, ou seja, uma localidade nascida no útero de
periferia suburbana de Lisboa, marcada desde sempre pela negligência ao nível
das instituições municipais e Nacionais, e profundamente constrangida pela
necessidade de se auto-definir ao nível do seu carácter comunitário.
Nascida de forma enquadrável nos modelos evolutivos mediterrâneos,
a Parede até no seu topónimo deixa antever uma necessidade de afirmação que
resulta do processo histórico da sua concretização.
Muito embora só exista, em termos institucionais desde o início do
século XX, a localidade da Parede, cabeça da antiga Freguesia, resulta teoricamente
da evolução de uma existência que havia sido marcada pela aldeia de Cai-Água (hoje
São Pedro do Estoril) e essa, por seu turno, marcada também pela existência de
diversas comunidades pré-históricas que utilizaram o seu espaço. Em termos
práticos, no entanto, e tal como o comprova o levantamento patrimonial Cascalense
(ver HENRIQUES, João Aníbal, Levantamento Exaustivo do Património Cascalense,
Cascais, Fundação Cascais, 2000), não existem praticamente laços de união entre
as duas realidades, uma vez que, a moderna Parede, de cariz republicano e
revolucionário, e assumidamente a mais proletária de todas as localidades do
concelho de Cascais, é uma realidade que resulta da chegada dos novos
habitantes pré-industriais que para ali vão trazer um sentimento de
suburbanidade que a antiga aldeia rural não conhecia. Os paredenses, hoje
entendidos como parte integrante, a todos os níveis da vivência cascalense,
foram, durante várias décadas, o resultado da existência de uma comunidade
proletária em que o estabelecimento urbano se alicerçou nos princípios, nas
orientações e nas motivações que anteriormente mencionámos.
Em termos físicos, com base na divisão dos terrenos que faziam
parte das grandes quintas que o Comandante Nunes da mata ali adquiriu para
mandar edificar, a preços módicos e acessíveis, uma nova povoação que
correspondesse às necessidades efectivas da classe trabalhadora que não
suportava habitar na cidade de Lisboa, onde os preços das acessibilidades eram
pagos com valores que eles não podiam aguentar, a Parede do século XX conhece a
auto-construção como forma eminente de se urbanizar. As velhas azenhas e
moinhos, colocados estrategicamente para receberem sem encargos de maior os
produtos agrícolas do interior do território, e para poderem enviar apara
Lisboa as farinhas após terem sido manufacturadas, deixaram de fazer sentido
num espaço onde todos eram iguais e onde todos sabiam fazer o mesmo. Os
operários que se instalaram na Parede, oriundos de muitas partes do país, e
observando o mesmo ritual quotidiano de utilização do comboio para chegar à
capital, tornaram obsoleta a economia tradicional deste espaço, facto que
obrigou a que se destruísse quase todo o parque habitacional antigo e
tradicional, que hoje praticamente é impossível observar no interior da
localidade da Parede, e o substituísse pelas novas casas de cariz operário e
burguês, que seguiram quase à risca, as orientações apontadas por Leontidou.
Estas novas edificações, longe de seguirem os modelos desde sempre
utilizados pela tradicionalidade local, impuseram-se através da diferença,
fazendo apelo a formulações estéticas e decorativas que permitiam a utilização
de muitas das bases culturais que traziam das suas terras de origem, e que eram
sistematicamente adaptados à nova vivência de conjunto que aqui procuravam
estabelecer. Vivendas como a do ‘Gato’, bastante próxima do centro da urbanidade
paredense, são exemplos paradigmáticos da forma como a utilização decorativa de
novas formulações, acaba por influir na capacidade de efectivarem, através do
cunho artístico pessoal dos seus criadores, uma afirmação pessoal e comunitária
da qual depende o próprio nascimento da povoação.
De facto, se nos ativermos às necessidades culturais da população,
depressa compreenderemos a importância que assume a possibilidade de, através
da decoração das suas casas, ganharem uma forma de afirmação que está em
consonância com tudo aquilo que é o espírito que enforma o nascimento da
institucionalidade e do poder da própria povoação. As casas, espelho muito fiel
do sentir cultural de cada um dos seus habitantes, são, no seu conjunto um
misto da harmonia que resulta da afirmação pessoal dos diferentes tipos de comunidade
que ali habitam, com a heterogeneidade que marca a diferença que entre eles, de
uma forma permanente e quase imutável, se vai efectivando.
A nível da estrutura urbana, ou seja, da forma como se dispõem os
edifícios no seio da complexidade real que resulta da necessidade de se
conseguir, na teia emaranhada de edifícios que compõem as diversas ruas
marcadas pela construção não-planificada, discernir linhas orientadoras que
promovam o entendimento sobre as bases culturais que a enformam, é possível
perceber que existe uma competição básica, de âmbito individual, dela
resultando a grande maioria das orientações que agregam as casas, a sua decoração,
e os próprios quarteirões onde se inserem.
Desta forma, ao nível da visibilidade e do ordenamento do
território, no seio de todas as incongruências que caracterizam a falta de
plano e de previsão urbana, é possível encontrar linhas mestras, em que a colocação
espacial de cada edifício, mais do que propriamente a sua localização
paisagística ou as acessibilidades, é definidora dos fundamentos que regem as
relações sociais. Esta situação, assaz curiosa se entendermos que no seio
destas povoações a visibilidade da casa, muitas vezes construída num
interstício sem quaisquer condições, é mais significante do que a própria
qualidade da sua construção ou as vistas que dela se fruem, permite-nos ainda
perceber qual é, verdadeiramente, a importância que a imagem e, logo, a própria
decoração, exercem sobre aqueles que a constroem.
Na Parede, cada canto e recanto reflecte esta vivência
profundamente sentido daqueles que construíram a povoação. Com uma aparência
erudita nas suas zonas nobres e a singeleza decorativa mais simples nas zonas
marcadas pelo desfavorecimento sócio-cultural, a vila define parâmetros de
urbanidade que dão corpo à sua existência.
Para compreender o que é hoje a Parede em termos patrimoniais,
importa perceber quais são as principais linhas definidoras da sua evolução
histórica, nelas congregando tudo aquilo que contribuiu para a gestão dos
equilíbrios sociais que tornaram possível a sua sobrevivência histórica. Por
isso, é essencial a capacidade de ver para além da monumentalidade que o
património por vezes exige, para se encontrar, quantas vezes perdido algures
num laivo de excelência perdida no contra-forte de um qualquer muro de suporte,
a informação que é necessária para entender a organização social a comunidade.
A Vila da Parede,
suficientemente longe do exercício do poder para sonhar com a verdadeira
expressão da liberdade, mas também demasiadamente importante para poder
subtrair-se à evolução histórica de Cascais e da Região de Lisboa, é exemplo
paradigmática da excelência urbanística, representando um papel fundamental na
definição da Identidade Municipal de Cascais.