por João Aníbal Henriques
A excelência urbana do Monte Estoril, Concelho de Cascais, resulta
da conjugação entre a forma de viver da sua comunidade e a definição criteriosa
do seu espaço comunitário. As casas, as ruas, a decoração dos jardins e até as
técnicas construtivas utilizadas na construção das habitações, dos seus muros
delimitadores e dos seus equipamentos, fazem parte de um projecto global que
pressupõe a recriação de um ideário social bem definido.
Um dos melhores exemplos desta projectada qualidade, até porque
foi sempre imaginado e concebido como um equipamento de índole prática que se
destinava a fins pragmaticamente dependentes do devir quotidiano da localidade,
é o das Cocheiras do Monte Estoril.
Aqui, marcada pelo binómio que se caracteriza em permanência pelo
contraste entre a existência burguesa e a aristocracia tradicional, acaba por
influir na criação de uma nova identidade local, na qual o próprio carácter
cénico da paisagem, do vestuário e da decoração das diversas casas, garante a
manutenção das prerrogativas que mantêm no seu lugar cada uma das partes que
compõem a nova totalidade social.
As Cocheiras do Monte Estoril são, por isso, um exemplo
paradigmático dessa situação. Com uma colocação geográfica extraordinariamente
boa, situada muito próximo da zona mais central daquela que foi na época a mais
nobre das nobres localidades da Costa do Sol, o pequeno complexo das cocheiras
possui características cénicas que permitem entendê-lo como uma espécie de
tradução da sua singularidade face à totalidade do espaço envolvente.
Muito próxima dos outros, de que depende para sobreviver, a
comunidade de assalariados que habita nas cocheiras possui um espaço próprio
que, em termos do seu enquadramento estrutural, se alicerça em princípios estéticos
que lhe garantem não se confundir com as partes restantes da paisagem urbana.
Construídas de raiz para albergar os empregados da Companhia do
Monte Estoril, principalmente os operários que trabalharam na construção da
linha férrea que ligava o Monte Estoril a Pedrouços, as cocheiras possuem no
seu andar térreo uma série de espaços para guardar animais. Com todo o terreno
vago que envolve o Monte Estoril, no qual facilmente se poderiam construir as
instalações necessárias à colocação dos animais, a Companhia opta por
colocá-los em conjunto com os seus operários, demonstrando assim que a
centralidade do espaço construído para esse efeito, contrariamente àquilo que
seria de esperar, não é definidora de uma qualidade e de uma excelência na sua
existência, mas sim de uma certa discriminação, essencial para que se possa
alicerçar a educabilidade que deveria enformar a criação da nova sociedade
estorilense.
Em termos estéticos, a decoração utilizada para a concretização
destas ideias, misto de beleza que deveria envolver uma zona nobre por
excelência, e de uma certa particularidade que garantisse a satisfação da
diferença, alicerça-se na utilização de uma cor diferente daquela que era
utilizada para a generalidade das restantes habitações daquele novo espaço.
Assim, enquanto que o ideal estético da denominada ‘Casa Portuguesa’, com a sua
luminosidade alva nas paredes, envolvida nos pormenores rocambolescos de uma
exuberância que dota aquele espaço de características que o vão transformando
numa zona única em todo o panorama turístico português, assenta na pintura em
tinta branca, fazendo recriar os laços existentes entre a nova vivência e
aquilo que se pretendia consubstanciar como a existência tradicional do País,
as cocheiras adoptam uma luminosidade opaca, baseada nos tons amarelados, ao
qual se apensam alguns elementos decorativos em madeira. A utilização da cor,
marcando a distinção do espaço servil face ao espaço nobre da localidade, e a
decoração em madeira, marcando uma aproximação aos ideais estéticos de índole
romântica que garantiam a dependência de ambos os espaços, é assim fundamento
de uma formalização objectiva do património edificado enquanto elemento gerador
de educação na nova comunidade.
A importância patrimonial das Cocheiras do Monte Estoril é, desta
forma, profundamente dependente da hierarquia social que compôs a localidade na
segunda metade do Século XIX, definindo um enquadramento cénico ao qual não é
alheia a necessidade de construir uma sociedade diferente.
Hoje, quando o Plano Director Municipal de Cascais abre caminho a
uma apreciação casuística de cada uma das peças patrimoniais do município, vale
a pena visitar as recuperadas (e adaptadas) Cocheiras do Monte Estoril, onde é
possível distinguir perfeitamente a inter-dependência que existe entre cada
edifício e o carácter singular daquela outrora distinta localidade Cascalense.
Compreender o Monte Estoril exige uma perspectiva de conjunto.
Cada uma das suas casas; cada detalhe do traçado sinuoso de cada arruamento;
cada uma das pedras aparentemente mal-aparelhada que compõe os seus muros; e até o aspecto algo
arruinado de alguns dos jardins que sobreviveram desde a sua concepção
romântica; faz parte do charme que levou longe o nome de Cascais.
Não compreender este
princípio, que a Companhia Mont’Estoril utilizou na concepção linear da
localidade, é condenar o Monte Estoril de outrora ao desaparecimento,
carregando consigo a excelência pela qual Cascais foi mundialmente reconhecida
em tempos que já lá vão.