por João Aníbal Henriques
As inconsistências do mar,
profundamente enraizadas nos arquétipos primordiais da vida dos Cascalenses,
marcaram de forma muito evidente o devir histórico da comunidade. Os desafios
enormes que o mar carrega, seja para pescadores ou seja para as suas famílias,
congregam em si a necessidade de recriar formas alternativas de o entender, de
o perceber e de o controlar.
Os mitos marítimos, quase sempre
presos de forma onírica aos principais pesadelos que flagelaram o dia-a-dia de
Cascais, são parte integrante da Identidade Municipal, neles se compondo os
alicerces da sua vivência simbólica e sagrada.
Nossa Senhora da Guia, situada
num promontório localizado à saída de Cascais em direcção ao Guincho, foi
sempre um dos pilares da expressão de Fé dos Cascalenses. Venerada desde tempos
ancestrais, numa dinâmica de culto que dava destaque principal à peregrinação
anual que para ali trazia milhares de forasteiros oriundos das mais diversas
partes do País, a imagem da Senhora a Guia resulta necessariamente da
existência prévia do farol e do registo traiçoeiro que o mar impõe naquele
recanto natural.
De facto, as mais antigas notas
históricas referentes a este lugar mencionam a existência de um farol nos
rochedos situados à entrada de Cascais. É crível, desta maneira, que pelo menos
desde o início da epopeia marítima Portuguesa, tivesse existido neste sítio um
farol que garantisse segurança àqueles que navegavam por aquelas perigosas
águas. Assim, a designação da Senhora da Guia, ou seja, da imagem que foi
encontrada no local onde se estava o farol com o mesmo nome, terá resultado da
apropriação geográfica da figura e não, como as Memórias Paroquiais do Século
VIII deixa subentendido, ao contrário.
De qualquer maneira, são várias
as lendas acerca do surgimento desta ermida e do culto à Senhora da Guia que
proliferam no imaginário de Cascais. As mais antigas, relacionam-se com as
figuras de Nossa Senhora que foram encontradas nas águas de Cascais. Quase
sempre interpretadas como sendo da Senhora da Graça, foram veneradas pelo seu
carácter miraculoso, atestado por diversos acontecimentos que se foram
sucedendo no burgo piscatório de Cascais.
Frei Agostinho de Santa Maria, na
sua obra “Santuário Mariano”, publicada em 1770, refere expressamente a origem
ancestral do culto a Nossa Senhora da Guia neste local. No entanto, associa-o
de forma directa à relação existente entre uma nascente de água que terá
existido no local onde hoje se encontra a ermida, estabelecendo assim uma
relação entre os mais antigos cultos de fertilidade que proliferaram durante a
Pré-História do actual território Cascalense e a devoção mariana posteriormente
estabelecida no mesmo local. Num exercício de sapiência que subjaz dos seus conhecimentos
no âmbito da geometria sagrada, vai mesmo ao ponto de interpretar os sinais das
pedras que existiam no espaço da fonte, para com base neles estabelecer de
forma criteriosa a natureza primordial do ritual Cascalense: “Ao pé da rocha
que fica na Praia de Cascais está uma fonte; e é constante tradição entre as
pessoas daquela vila que nela apareceu a Senhora da Guia. E ainda querem comprovar
esta tradição com uma pedra da mesma fonte, na qual se vê uma pegada, que dizem
ser de Nossa Senhora, que por tal ainda hoje é venerada e lhe chamam a pegada
de Nossa Senhora. E juntamente se vê também na mesma pedra uma coroa esculpida;
se foi pela natureza, para que também esta manifesta que ela é a Rainha do Céu
e da Terra, ou feita artificialmente se não sabe dizer nada. Esta é a tradição”.
Embora de âmbito cronológico mais
tardia, uma segunda lenda marca de forma assaz curiosa a relação entre Nossa
Senhora da Guia e Cascais. Como refere Ferreira de Andrade na monografia que
publicou aquando da comemoração do sexto centenário da elevação de Cascais à condição
de vila independente de Sintra, o principal factor motivador do incremento do
culto devocional à Virgem da Guia, depois de nele se ter integrado a romagem
anual promovida pelos comerciantes de Lisboa a partir do Século XVII, foi uma
história acontecida com o antigo cirurgião-mor do Regimento de Cascais, José
Gomes de Cenas, que em criança terá sido raptado da casa de seus pais na Vila
de Cascais. Não se sabendo o que lhe aconteceu, o seu desaparecimento causou
pânico e estupefacção na vila, tendo levantado todo o povo na busca do menino.
Passados alguns dias, quando a esperança de o encontrar vivo já não existia,
alguém terá ouvido gritos que vinham das profundezas da arriba na zona da Guia,
ali tendo encontrado, depois de lá chegarem vindos por mar, o menino são e
salvo que desesperadamente tentava sair. Questionado sobre o que tinha
acontecido e como tinha ido possível sobreviver sem comida nem água durante
tanto tempo, o menino terá respondido que foi transportado para aquele buraco
por umas bruxas de Cascais que para ali o levaram voando. E quando à
alimentação, disse simplesmente que diariamente uma senhora muito bonita lhe
levava sopinhas de cravos para ele comer. Retirado do buraco e levado para a
pequena ermida da Senhora a Guia, então já ali existente, a criança terá olhado
para a imagem de Nossa Senhora e terá dito aos pais que tinha sido aquela a
senhora que o tinha ajudado a sobreviver!
A partir desse momento, e até ao
desastre provocado pelo terramoto de 1755, a Senhora da Guia viu crescer de
forma desmesurada a devoção, facto que se traduziu numa romagem anual, na mesma
época das comemorações do Espírito-Santo Cascalense, que levava à Guia milhares
de peregrinos que chegavam de Lisboa e de Sintra.
A romagem, organizada pela
Irmandade de Nossa Senhora da Guia, criada por iniciativa dos vereadores da
Câmara Municipal de Lisboa que, em 1522 assinaram o compromisso da irmandade,
integrava plenamente o simbolismo associado aos milagres que o agiológio mariano
consagrava. Serão certamente dessa época, construídos para dar resposta à demanda
que o lugar gerava junto de gente vinda de muito longe e de diversas partes de
Portugal, os cómodos da hospedaria que envolvia a ermida. Existentes já em
1758, quando as Memórias Paroquiais a referem expressamente, a Hospedaria de
Nossa Senhora da Guia ainda hoje pode ser vista adossada a Nascente do templo
.
As cantarias manuelinas das suas
portas, bem como sepultura de António Ribeiro da Fonseca, com data de 1577, que
existe no seu interior, denotam origem mais antiga, deixando antever as várias
campanhas de obras, de remodelações e de reconstruções de que foi alvo ao longo
dos séculos.
Em 1810, quando finalmente terminaram
as obras de recuperação da ermida e do farol depois dos estragos causados pelo
terramoto, foi colocada sobre a porta principal um painel com as armas reais e
a data em questão, que complementa, em termos decorativos, os magníficos painéis
de azulejos existentes no seu interior. A “Adoração dos Pastores” e a “Adoração
dos Reis Magos”, de origem indeterminada mas certamente muito anterior àquela
que consta na dita pedra armoriada, compõe o espólio interno da ermida, numa
expressão rebuscada que contrastava com a singeleza do local.
Perdida a devoção a partir do
início do Século XX, quando a secularização da vida nacional determinada em
termos políticos a partir da implantação da república a isso obrigou, a Ermida
de Nossa Senhora a Guia foi perdendo importância na definição das tradições
Cascalenses.
Apesar de tudo, é local
inultrapassável numa visita a Cascais, até porque ali se sente ainda o perfume
agregador da Fé mariana na definição identitária municipal.