por João Aníbal Henriques
Quando em 1997, em pleno processo
de preparação do Levantamento Exaustivo do Património Cascalense, publiquei um
trabalho sobre a história da ruralidade da Freguesia de Cascais (*), a povoação
da Areia era ainda palco privilegiado das ancestrais tradições rurais que deram
forma ao município de Cascais.
No Largo de São Brás, expressão
máxima do sentido comunitário da localidade, congregavam-se os elementos
principais de uma existência na qual a ligação aos trabalhos da terra e uma
dependência extrema relativamente às agruras da natureza, se revezavam amiúde,
representando o principal sustentáculo de um ideário comunitário comum que
conduziu à arreigada identidade que a localidade ainda possui.
A Capela de São Brás, o chafariz
e o lavadouro comunitário, partilham por ali o coração simbólico da Areia,
dando forma a uma existência na qual a singeleza do quotidiano funciona como
elemento motivador de uma forma de ser e de estar que fomenta o tecido social
do local.
A Areia, de cujas origens pouco
se conhece, apresenta um topónimo que deriva da proximidade à Praia do Guincho
e a estrutura pobre dos seus solos. Mas, é também essa aparente fragilidade
natural que, conjugando-se em processos dinâmicos de sobrevivência, vem
determinar uma série de práticas que são vincadamente locais e
extraordinariamente únicas no contexto da existência rural de Cascais e de Portugal.
Do período romano, o povoado dos
Casais Velhos, com a milenar fábrica de púrpura e a ligação directa à cabeça do
Império, representa a expressão máxima da sua monumentalidade, traduzida em
algo que, apesar do abandono a que tem sido devotado ao longo dos últimos anos,
é irrepetível e assume laivos de primeira linha no inventário do património
Cascalense.
Mas a Capela de São Brás, situada
em plano coração da Areia, é também ela eixo essencial na estruturação moderna
da localidade, representando um papel catalisador no desenvolvimento da
estrutura social que há-de definir o devir quotidiano naquele espaço.
Sem origem cronológica conhecida,
a Capela de São Brás que hoje conhecemos será certamente o resultado de um
processo de paulatino desenvolvimento. A sacralidade do local, provavelmente
marcado por um antigo templo e/ou ermida que por lá tenha existido, foi
necessariamente o ponto de partida de uma expressão cultual que gera em seu
torno os elementos necessários à fixação humana. Em 1527, quando se realizou o
primeiro recenseamento à população, a Areia tinha somente nove vizinhos, o que
corresponde a pouco mais de duas dezenas de pessoas, que entre si partilhavam
os parcos recursos que resultavam do trabalho da terra.
A pobreza material da população,
cessada que estava a exploração riquíssima da produtiva fábrica de púrpura,
está bem expressa na formulação urbanística da localidade e, sobretudo, no
carácter chão da arquitectura desta sua capela. De traços simples e
simbolicamente próxima dos valores muito regulares que sempre caracterizaram a
existência local, a Capela de São Brás conjuga em si os principais elementos
que nos ajudam a perceber e a conhecer a povoação.
A devoção a São Brás, o santo arménio
que começa a sua vida adulta como médico e que abandona tudo o que tem e o seu
dia-a-dia na cidade depois de ouvir o chamamento de Deus, é também ela
ilustrativa do carácter longínquo que a Areia representou durante muitos anos,
em linha com a opção do Santo por uma vida de eremita, devotado à interioridade
e à oração, em comunhão profunda com a solidão da natureza. A singeleza da
história, a mesma que caracteriza a Capela de São Brás e mesmo o devir
quotidiano na localidade da Areia, dão nota desse desligar sentido das
correntes que nos prendem permanentemente à clausura da materialidade,
representando um ímpeto de libertação que é resultado da proximidade a Deus.
A Areia, na sua ligação a São
Brás, representa assim a profundidade da entrega devocional de Cascais à causa
do despojamento material, numa sentida e assumida opção pela simplicidade
extrema.
As duas devoções que estão nos
altares secundários deste templo, entregues a Nossa Senhora de Fátima e ao
Sagrado Coração de Jesus, são também elas expressivas deste caminho, denotando
uma continuidade na prática devocional que terá obrigatoriamente de assentar
numa vivência comunitária solidamente assente num conjunto e valores simbólicos
desenvolvidos ao longo de muitos anos.
Visitar a Areia e a Capela de São
Brás, num exercício de libertação perante a opressão sensível do charme de
Cascais e dos Estoris, é assim uma oportunidade para entender a perenidade
desta escapatória axial na formulação mais profunda da comunidade e do
património Cascalenses.
(*) HENRIQUES, João Aníbal, História Rural Cascalense,
Cascais, Junta de Freguesia de Cascais, 1997.